“Me contem, me contem aonde eles se escondem?
atrás de leis que não favorecem vocês
então por que não resolvem de uma vez:
ponham as cartas na mesa e discutam essas leis†Planet Hemp
A seção Cartas na mesa é composta por opiniões de leitores e membros do DAR acerca das drogas, de seus efeitos polÃtico-sociais e de sua proibição, e também de suas experiências pessoais e relatos sobre a forma com que se relacionam com elas. Vale tudo, em qualquer formato e tamanho, desde que você não esteja aqui para reforçar o proibicionismo! Caso queira ter seu desabafo desentorpecido publicado, envie seu texto para coletivodar@gmail.com e ponha as cartas na mesa para falar sobre drogas com o enfoque que quiser.
Nesta edição orgulhosamente apresentamos mais um texto de nosso fiel colaborador Rafael Zanatto.O álcool e a maconha: de como um entrou pela porta, e outro pela fresta da janelapolemiza: “Todos atualmente falam da epidemia de crack, mas a normatização do consumo não pode disfarçar os reais interesses do capital. As grandes construtoras, redes imobiliárias, clÃnicas de recuperação privadas, sistema carcerário, faculdades de direito: o proibicionismo mantém todos estes setores aquecidos, e muitos outros”.
Voltando ao histórico de consumo e regulamentação do álcool, Zanatto finaliza debatendo também o status da hipócrita proibição da maconha. Confiram o texto completo abaixo, que vale a pena.
O álcool e a maconha: de como um entrou pela porta, e outro pela fresta da janela.
Rafael Morato Zanatto
O ato de escrever, além de perpetrar em palavras um pensamento enrijecido, deve navegar com desenvoltura entre as contradições de um modelo. Quem sabe o ideal não seja a sÃntese entre os adeptos dos fluxos, fluidos e nomadismos, com os estruturalistas, dos adeptos do barbudo, e dos que acreditam no vigor do anarquismo.
Escrevi algumas vezes sobre coisas banais, outras interessantes, e nem sempre envolvendo a temática da cultura cannabica. Quando o fiz, nunca fui partidário de uma substância mais que a outra. Basta olhar pela janelinha restrita do busão para ver um monte de gente enfileirada para comprar pão, coxinha, tomar seu cafezinho, porque ajuda a trabalhar; tomar o remedinho, porque ajuda a dormir. E um vinho com esse frio, nem se fala. Eu gosto dessas substâncias, e não quero que deixem de existir. Só não entendo porque a maconha é proibida.
Eis a nossa época, repleta de coisas dignas de experimentação. Como sintomas deste turbilhão, o desconhecido evidencia o grande número de probabilidades, de sentidos e sensações. Alguns dos mais curiosos desta época concentraram seus esforços em narrar suas aventuras novo mundo afora. Foram as grandes navegações do século XV e XVI que facilitaram a distribuição da pimenta e do tão famoso chocolate. Imaginem o pega de comer o cacau dos astecas, mas não vamos nos estender neste filão, e nem mesmo aos verdadeiros bacanais nas tabernas medievais, regadas a uma bebida derivada do mel.
Aqui nos interessa a história do nosso canto, dos espaços vazios, das reinvestidas sociais contra as medidas normativas desencadeadas pela vontade de segmentos especÃficos da sociedade, não chamando de classes porque não nos convém debater a partir de modismos. Escapando pela tangente, mesclar e mesclar cada vez mais a atualidade das correntes de pensamento.
Todos atualmente falam da epidemia de crack, mas a normatização do consumo não pode disfarçar os reais interesses do capital. As grandes construtoras, redes imobiliárias, clÃnicas de recuperação privadas, sistema carcerário, faculdades de direito: o proibicionismo mantém todos estes setores aquecidos, e muitos outros. Não demoramos em recepcionar os papos de proibição municipal do álcool e dos artistas nas ruas de São Paulo.
Não se assustem artistas de formação, vocês poderão continuar a fazer uso privado do espaço público, assim como todos que dirigem seus carros, e tampouco temam executivos, poderão continuar a ingerir sua cerveja depois de um fastigante dia de trabalho. Estas medidas apenas serão aplicadas aos meninos de rua que disputam espaço com os artistas nos faróis, e aos mendigos que tomam sua caninha em paz. Enganam-se aqueles que acreditam que a normatização das substâncias e das condutas, relativizadas a partir da posição social dos indivÃduos, são frutos de uma polÃtica recente.
Sempre é bom recordar da paulicéia, palco dos modernistas, dos ricaços, filósofos financiados e dos escritores dos cafés. Num mundo que se pretende plural, tal como é, podemos notar algumas tendências gerais, e algumas delas, implicaram-se na tarefa de separar através de reformas arquitetônicas, os almofadinhas dos bebaços de rua, dos negros e dos populares. Como o marxismo, as dicotomias estão fora de moda. A pluralidade é notável, mas o capital e as relações sociais que se organizam a partir dele são evidentes. Prefiro na lata falar de gente da rua, pessoas comuns, sem lastro econômico, a mercê do estado dos outros. Um monte de alegrias aprisionadas, um monte de alcoóis a povoar as ruas dessa grande metrópole cruelmente provinciana. Para situar os desavisados, estamos no fim do XIX e princÃpio do XX.
Alcoóis e alcoólatras são coisas distintas. A primeira é um modo de vida, e a segunda, uma rotulação médica fabricada para sustentar um discurso fundamentado em uma polÃtica normativa especÃfica. Sempre nos lembramos também que a maconha foi proibida por ser um hábito de negros. Dentro do processo de desmistificação dessa patifaria toda, a tese Alegrias Engarrafadas: os alcoóis e a embriaguez na cidade de São Paulo no final do século XIX e começo do XX, senta o pé na porta da ignorância. Mergulhando de cabeça no proibicionismo dos hábitos, das alegrias e dos entretenimentos, a serviço daqueles que querem uma sociedade organizada, separando ou suprimindo tendências que se desenvolvem na arte de viver em sociedade.
Com a obra de Daisy de Camargo, imaginamos estar sentados nos luxuosos cafés, freqüentados pelos modernistas e por aqueles tipos de alguma instrução, que eram chamados de doutores, com méritos assegurados pela atmosfera de um paÃs atrasado, onde imperava os odores de alfazema e café. Espaço de reunião da elite. Já os botecos era coisa de iletrados, operários, imigrantes dispostos a fazer a América no braço. O caso é que nem sempre foi assim. Eis o valor de pular de cabeça nas sociabilidades anteriores à patifaria presente.
Antes dessa divisão, as coisas eram um pouco diferentes. Tudo acontecia no mesmo espaço. O consumo a fartar convivia lado a lado ao très chic. “Pobre morava perto de rico, absinto com cachaça, armazém de molhados (que também era botequim) com restaurant, coco da Bahia com cristal, populacho com crème de la crème. Claro que no decorrer das próximas décadas haveria uma ânsia de separação e limpeza e essa transformação não se deu de forma linear, tampouco tranqüila. Esse quadro evolutivo que se traça de uma passagem desembestada pela cidade de taipa, cidade européia, cidade modernista, e chega na metrópole, é mais uma construção paulistana na ambição da reiteração de uma identidade do progresso. O que se vê no cotidiano das ruas e das moradas é uma diversidade de temporalidades, ritmos, costumes, hábitos, modos de viver, de se embriagar.â€
Daà os poderes públicos entraram em ação como uma máquina de esteira, promovendo reformas especÃficas na arquitetura dos edifÃcios. Segundo a historiadora, em grande parte isso decorreu da aplicação do Código de Obras de 1886, tendo como pontos principais a preocupação com o arejamento e com a luminosidade dos edifÃcios. Daisy de Camargo aproveitou-se da oportunidade para mencionar o aparecimento dos quiosques na cidade de São Paulo, com uma proposta determinada de embelezamento e exploração de renda. A exploração desta atividade não era novidade para os portugueses, que de pronto, tomaram conta da praça. O projeto de mobiliário urbano très très chic, na sua interpretação local, apropriada pelos comerciantes patrÃcios e pelo populacho, foi à bancarrota nos seus primeiros objetivos de requinte, posto que, como visto anteriormente, em São Paulo, esse comércio absorveu uma população pobre, apartada de áreas determinadas do espaço urbano.
Os alcoóis se re-apropriaram de um espaço urbano que havia sido concebido com a finalidade de excluÃ-los, e não os integrar. A metáfora que a autora se vale para definir re-apropriação é rica em clareza, subsidiando sua reprodução na integra:
“A criança toma essa atitude o tempo todo e de maneira mais livre porque ainda não teve seu fluxo de consciência totalmente domesticado e coagido. Ela faz dos óculos um avião e vira um piloto. Re-apropriação é isso: é a descoberta de que os óculos podem virar um avião, de que uma iniciativa pública de higienização dos hábitos populares, como a instalação dos quiosques, pode ser deslocada como um propulsor de laços de sociabilidade. E essa é a grande resistência do mundo do consumo dos objetos: a desobediência e a subversão do seu uso.â€
O que não impediu o grande número de confusões envolvendo a bebedice, escândalos e prisões nas cercanias dos quiosques. Na Rua da Esperança, muitos foram presos por embriaguez, alterações, desordens e pela menção de palavras obscenas em alto e bom tom.
Além da proposta de higienização e embelezamento das cidades, fatores sociais importantes imprimiram a separação social dentro desse novo processo de re-organização arquitetônica. A emancipação dos escravos em 1888 e a constante migração de italianos, portugueses, e espanhóis, aceleraram o processo. Os libertos formaram uma nova massa de trabalhadores. Diferentemente dos ingleses que procederam com um processo transitório entre a escravidão e o assalariamento estudado por Tocqueville em A Emancipação dos Escravos, no Brasil a coisa se fez mais orgânica.
Sidney Chalhoub aponta em Visões da Liberdade que no Rio de Janeiro, anos antes do “13 de maioâ€, os escravos em idade avançada se entregavam aos prazeres da cachaça como forma de resistência aos trabalhos forçados. “Esse pé é meu, essa mão é minha, não sou de ninguém;†As verdades embriagadas poderia ser ouvida pelas ruas. Não queriam mais ser Bertolezas na mão de nenhum branquelo safado e ocioso. Os cortiços demolidos, o centro repaginado. Afinal, não ficava bem para a capital do paÃs na época, mostrar os burros de carga; e taparam o sol com a peneira, criando os subúrbios cariocas.
Voltando a São Paulo, os estrangeiros que aqui chegavam com seus vÃcios em jogo e seus hábitos singulares isolaram os bacanas da cidade nos cafés. A cachaça foi separada do absinto, o ficar relaxado pelo estar desperto. O papo de balcão, a dose e os acentos improvisados separado das xÃcaras, das acomodações suntuosas e dessa maravilhosa droga que é o café. A transformação da cidade de São Paulo refletia também a insegurança dos congressistas em escala nacional. O processo de libertação trazia consigo a herança da escravidão, que não incluÃa nenhuma noção de justiça, respeito à propriedade e liberdade. “A liberdade do cativeiro não significava para o liberto a responsabilidade pelos seus atos, e sim a possibilidade de se tornar ocioso, furtar, roubar, etc. Os libertos traziam em si os vÃcios de seu estado anterior.†E nisso entra os hábitos do consumo da ganja e da cachaça, apreciadÃssima entre os imigrantes.
Enquanto isso, a elite se fartava de champanhes, se esbaldava segundo os padrões do Moulin Rouge. Aos poucos, os alcoóis eram considerados “gente diferenciadaâ€, como os afrescalhados de Higienópolis atualmente classificaram 80 por cento da população da cidade. O consumo do álcool penetrou em todas as camadas, assim como o café. Todas as investidas contra o hábito fracassaram.
São Paulo já conheço, cada um no seu quadrado. As resistências se desenvolveram, mas o processo de apartamento social foi mais intensivo que no Rio de Janeiro. Podemos explicar pela geografia: os morros cariocas teriam limitado as iniciativas polÃticas? Aqui, temos um sotaque da galera de Franco da Rocha, muito diferenciado da Vila Madalena. No rio, a Lapa parece um grande liquidificador, onde os narigudos, os maconheiros, os playboys, os malandros e os caretas parecem compor uma massa menos dilacerada por intensivas separações. O Rio de Janeiro tem vida de rua, desde os discursos do Rei, apoiado na janela da Quinta ou dos malabarismos de palanque no espaço da praça. Algum cabeçudo estudou isso, mas como a cabeça não é uma máquina que tudo registra, é ótimo poder deixar pra lá.
As perseguições aos capoeiras, aos negros, aos alcoóis, e aos pobres não cessaram com a intensificação de um plano ideológico baseado no conceito de cidadania. Porém, foi necessário criar mecanismos normativos mais adequados a formação do Brasil. A ascendência da cidadania, que pouco a pouco chegou à s mulheres, e aos letrados, gerou novos espaços na polÃtica, como o populismo. O proibicionismo nadou de braçadas nessas águas.
A heterogeneidade social encontrou no proibicionismo a tábua de salvação para a contenção social. Aqui não houve os irmãos Gracco, quando a questão foi perseguir policialmente a cultura canábica, ao contrário do álcool de do café, que não era coisa de “ignorantes.†A maconha ficou a cargo da polÃcia, já habituada a lidar com negros fujões desde a época dos capitães do mato. Ao álcool, couberam punições apenas na evidencia do excesso, porque seu consumo estava mais disseminado. E champanhe tinha álcool.
Desenho de Calma
Sem hesitar, enfiei meu corpo numa caixa de ferro voadora e mordisquei o Pão de açúcar. Me joguei pra Biblioteca Nacional, na missão de tentar entender um pouco dessa história. A repressão encarcerava quem puxava um fumo. Lembro de ter lido a história de um estivador que pegou um ano de cana por porte de 25 “cigarros de feitura ordinária.†Abandonado a própria sorte no tribunal, interpelou bravamente seu acusador, o desembargador Ademar Tavares, oponente brutal do que chamou de “um dos maiores flagelos da humanidade.â€
O medo de que a maconha penetrasse nas altas rodas foi tamanho que Roberval Cordeiro de Farias dava graças à rápida identificação médica do vÃcio da maconha, “de modo a evitar entre nós a sua disseminação, não tendo o seu uso conseguido ultrapassar as classes sociais mais desprotegidas e ignorantes dos seus malefÃcios.â€
Como o cristianismo, as várias faces do álcool garantiu-lhe a permanência em todos os setores. Quem nunca conseguiu comprar uma cachaça na Paulista? Já a ganja, cultura mais especÃfica, foi violentamente atacada, continuando em guetos de consumidores. O Serviço Nacional de Educação Sanitária do Ministério da Saúde, lá pros anos 50, procurou demonstrar que o consumo da maconha é responsável pela despersonalização do indivÃduo: “perda de todos os sentimentos nobres, que faz homens ficarem insensÃveis a prostituição da esposa ou da filha.†É claro que o figurão Irabussú Rocha não se esqueceu de comentar que a maconha era responsável pelos assassinatos assentados em motivos fúteis, como os “da mãe querida, ou do irmão; o latrocÃnio sem explicação: a maconha é a ameaça permanente à segurança da sociedade.â€
Reformas arquitetônicas, gente jogada de um lado pro outro: estádios da nova copa do mundo. Anos depois do álcool, a maconha agora rompe essa névoa que obscurece a compreensão, no calor da luta social. Como podemos observar, hora ou outra na internet nos deparamos com argumentos do tipo: “você gostaria de ser operado por um médico chapado?†Com humor, me lembrei do personagem de Burroughs: O médico embalado à coca na extração de um tumor. Sua descrição ainda povoa minha mente. No Freestyle, “sugou velozmente o estimulante, partindo o tecido abdominal à navalha. Localizado o mau, não teve dúvidas e com os dentes, abocanhou o intruso num golpe rápido e preciso.
É preciso calma, mas o que se constatou na Marcha da Maconha é que o consumo está disseminado. O indivÃduo teve mais força que o estado punitivo, e agora não adianta mais tentar voltar atrás. Lembro-me de olhar pro alto e ver uma senhora, na sacada de sua casa, estourar uma bomba de peito aberto. E de um pessoal num casamento na Rua Ipiranga, que saiu à s ruas ver o bonde passar. A malucada gritou “você ai parado também fuma um baseado†e a reação dos convidados foi impagável. Metade fechou a cara, e de resto foram sorrisinhos e piscadelas. Chega dessa guerra hipócrita. Legalize o comércio e gere emprego, grana, desenvolvimento. A maconha é rentável, e poderia muito bem aquecer a economia de pequenas propriedades rurais, que no momento estão à mercê dos bancos e latifúndios. Em todas as profissões, em todas as classes! Apesar de vitorioso na economia, o segregacionismo falhou com a maconha. Não adianta chorar pelo leite derramado, e sim evitar mais derramamento de sangue.
Idéias flutuantes
Alegrias Engarrafadas: os alcoóis e a embriaguez na cidade de São Paulo no final do século XIX e começo do XX – Daisy de Camargo
Visões da Liberdade – Sidney Chalhoub
Lar, Trabalho e Botequim – Sidney Chalhoub
O Cortiço – AloÃsio de Azevedo
Maconha: Coletânea de Trabalhos Brasileiros
Y otras cosas mas