Com auditório lotado, procurador diz que entrará com ação para trocar o comando da PM
Por Gabriela Moncau
“Se a gente soubesse que viria tanta gente, terÃamos solicitado o estádio do Pacaembuâ€, brincou o defensor público Carlos Weis, mediador da audiência pública sobre o extermÃnio de jovens no estado de São Paulo, que abarrotou o auditório do Ministério Público Federal (MPF) na quinta-feira, 26. Organizada pelo Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe), Defensoria Pública de SP, Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH) e MPF, já de inÃcio era possÃvel prever que o debate seria acalorado à medida que o espaço se preenchia por militantes sociais, familiares de vÃtimas de violência policial e policiais militares, também com seus familiares.
Taxa de HomicÃdios
Somente no mês de junho, em comparação com o mesmo perÃodo do ano passado, a taxa de homicÃdios dolosos aumentou 47% de acordo com dados da Secretaria de Estado de Segurança Pública. Esses números nem contabilizam os casos de resistência seguida de morte, que entram no levantamento de letalidade policial, ainda não divulgado. De acordo com análise feita com dados da Corregedoria da PM pelo jornalista André Caramante da Folha de S. Paulo, atualmente ameaçado de morte, a Rota (grupo especial da PM de São Paulo), matou entre janeiro e maio desse ano 45% mais que no mesmo perÃodo em 2011. Em comparação a 2010 o aumento foi de 104,5%. No mês de junho a média é de 14 mortes por dia, perÃodo mais violento desde que dados sobre criminalidade passaram a ser divulgados mensalmente, há 18 meses.
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Na audiência pública, o número de mortos contabilizados desde o inÃcio de junho quando começou o sequencial extermÃnio de jovens principalmente na periferia paulista é de 300 civis e 40 policiais. Faixas da polÃcia com dizeres como “A vida e a profissão do PM é esquecida quando está em jogo o 1º lugar do ibope da mÃdia†e a perfilação de policiais cadeirantes no palco imediatamente atrás da mesa da audiência se misturavam com fotografias de jovens assassinados e cartazes do movimento negro e de movimentos em defesa dos direitos humanos.
Guerra Particular
Com mordaça preta e camisetas das Mães de Maio (movimento social de mães e familiares de vÃtimas dos mortos por violência policial em maio de 2006) ou com fotos de Bruno Viana, jovem de 19 anos morto com 25 tiros em blitz policial em Santos em 19 de julho, se posicionaram ao lado das faixas dos policiais.
“Vemos uma guerra particular nesse último mês e meio, entre a polÃcia e o crime organizadoâ€, falou Ivan Akselrud de Seixas, presidente do Condepe, completando que a categoria “resistência seguida de morte é uma forma absolutamente ilegal de dizer porque uma pessoa morreuâ€.
A defensora pública Daniela Skromov de Albuquerque começou sua fala dizendo que estavam todos ali para o mesmo fim, “acabar com a roleta russa que pode estourar na cabeça de qualquer umâ€. Para ela, há muitos anos o estado de SP tem Ãndices inadmissÃveis de mortes cometidas por policiais: “De acordo com estimativas internacionais, de todas as mortes violentas, a cifra máxima que se admite que possa ser feita pela polÃcia é de 3%. Em São Paulo, 20% das mortes violentas são feitas por agentes do Estadoâ€, apresentou. “Durante os 21 anos de ditadura militar tivemos o saldo de 475 mortos ou desaparecidos. Em São Paulo temos de 500 a 600 pessoas assassinadas por anoâ€, informou.
PM Letal
Daniela criticou, ainda, a falta de investigação da letalidade policial, ao afirmar que a maior parte dos processos analisados pela Defensoria Pública são de casos em que primeiro se atirou para depois ver quem foi morto. “E dispara-se com vários tiros, invariavelmente em regiões vitais. Não se preserva, por exemplo, a cena do crime. E há várias pessoas enterradas como desconhecidas porque nem se deu ao trabalho de coletar a impressão digital da pessoa e avisar à famÃliaâ€, acusa.
Em seguida, Rildo Marques de Oliveira, também do Condepe, chamou atenção para o fato de que essa situação não se inicia em 2012. “Há em SP uma falência do sistema de segurança pública. Não temos claros os dados para termos um diagnóstico do que está acontecendo. Não podemos admitir que agentes policiais apliquem pena de morte, que não existe em nosso paÃsâ€, finalizou, ovacionado.
Ação Contra Comando
Matheus Baraldi, procurador da República que frisou a necessidade de a audiência sair com definições concretas de reação, anunciou que vai entrar com ação civil na Justiça Federal solicitando o afastamento do comando da PolÃcia Militar de São Paulo, cuja liderança está atualmente nas mãos do coronel Roberval Ferreira França. Vai requisitar, ainda, que o MPF acompanhe a atuação policial no estado nos próximos 12 meses. “Já é momento de convocar a justiça federal. Essa estrutura ideológica de violência desmedida já atinge seu limiteâ€, afirmou, ao dar o exemplo de um garoto que foi espancado por policiais até a morte em frente a sua mãe. “É um sinal inquestionável de que há problemas sérios de controle. Os praças se transformaram em máquinas de matarâ€, definiu.
O governador Geraldo Alckmin, ao se inteirar da medida, a classificou como “totalmente descabidaâ€. Segundo ele, o Ministério Público deveria investigar o tráfico de drogas na fronteira ao invés de intervir na segurança pública do estado.
Pavor em Sapopemba
Sheila Olália, do Centro de Direitos Humanos de Sapopemba, foi a primeira a tomar a palavra quando as inscrições foram abertas ao público. “Não é a primeira vez que fazemos denúncias desse tipo, mas é verdade que nunca vimos tamanho pavor na região de Sapopemba como nos últimos tempos, com a execução de tantos jovens por policiais militaresâ€, expôs. “Temos inclusive uma lista de jovens que dizem que serão mortos ainda. A comunidade está apavoradaâ€, descreveu, ao contar o caso de 3 jovens usuários de drogas que foram recentemente executados em um barraco no Jardim Planalto. “Antes a Rota tinha passado lá e disse que era um bom lugar para fazer uma chacina. Esses jovens foram espancados e assassinados de joelhos. Foram retirados e enterrados como indigentesâ€, narrou, enfurecida. “Queremos saber quantos jovens foram assassinados nos últimos meses! Quem vai acompanhar as mães, jurÃdica e psicologicamente?â€, questionou.
“Eu vi com meus próprios olhos um garoto de 12 anos ser pego pela polÃcia, a mãe tentar acompanhá-lo e ser agredida fisicamenteâ€, narrou Carlos Eduardo Matos da Ação Educativa e Associação dos Moradores da comunidade Nelson Cruz. “A comunidade se revoltou, não houve nenhum disparo de tiro letal, mas muita bomba, spray, muita gente apanhou. A linha de frente do confronto foram as mulheresâ€, relatou. “A polÃcia, que deveria nos defender e ser a garantir os direitos humanos do povo, passou na minha comunidade e deixou o recado de que os adolescentes não deveriam ser recolhidos na delegacia ou na Fundação Casa, mas reconhecidos no IMLâ€, disse. “Um aluno do projeto que eu coordeno, o Edson, foi executado com 3 tiros no peitoâ€, completou: “Não precisamos dessa violênciaâ€.
Mães de Maio
O microfone, em seguida, foi passado para Débora Silva, das Mães de Maio, em uma das falas mais aplaudidas do evento. “Queremos outro modelo de segurança pública. Essa polÃcia e esse modelo opressor e exterminador tem que ser extinto. Nós não devemos nada. Nós somos os patrões. Pagamos com nossos impostos as balas que matam nossos filhosâ€, afirmou, apontando a famÃlia do adolescente morto em Santos, Bruno Viana. “Ele morria no mesmo perÃodo em que o publicitário foi assassinado. Mas ele não ganhou a mesma atenção porque é negro e pobreâ€, avaliou, aproveitando para informar que mais 2 jovens haviam sido assassinados há pouco tempo no mesmo Morro São Bento. “O negro e o pobre querem viver! Quero ver o poder popular nas ruasâ€, convocou.
As Mães de Maio protocolaram nessa semana em BrasÃlia uma carta à presidente Dilma Rousseff cobrando acompanhamento federal jurÃdico e polÃtico do crescimento da violência estatal, resposta ao pedido de federalização dos chamados crimes de maio de 2006 (quando 493 morreram em 12 dias), a criação de uma comissão para a investigação de crimes policiais e abolição imediata dos registros de resistência seguida de morte.
Execução
Douglas e Felipe, dois adolescentes (sem antecedentes criminais) estavam em uma moto em São Bernardo do Campo em 30 de novembro do ano passado quando receberam diversos disparos de um capitão e dois soldados da PM. “Um morreu na hora e o outro foi executado a caminho do hospital. O inquérito policial sumiu. Ontem encaminhamos esse caso para a Relatoria de Execuções Sumárias da ONUâ€, expôs o vice-presidente da Comissão Especial da Criança e do Adolescente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Ariel de Castro Alves. As famÃlias dos dois garotos se faziam presentes na audiência. “Existem vidas que valem mais que outras. Porque rico tem indenização e pobre não consegue nem achar o corpo de seu filho?â€, denunciou Ariel, que retificou as crÃticas ao registro de resistência seguida de morte: “Se alguém entra na minha casa e eu reajo com um tiro, respondo por homicÃdio. Por que bandidos fardados não respondem por seus atos?â€
“Depois que transferiram os casos para o Departamento de HomicÃdios e Proteção a Pessoa DHPP, nenhum caso foi esclarecido. Isso só serviu para o gabinete do secretário de Segurança controlar as investigações”, declarou o advogado, integrante da Fundação Criança de São Bernardo do Campo, pouco antes de o público fazer 1 minuto de silêncio pelas vÃtimas de mortes violentas.
Extinção das Atuais PolÃcias
MaurÃcio Ribeiro Lopes, promotor de justiça, defendeu a “extinção de todas as polÃcias tais como as conhecemos hojeâ€, não deixando de fazer crÃticas também à justiça paulista, que descreveu como fascista. “Durante anos mudamos sistematicamente nossa moeda para a adequação a taxas inflacionárias. Enquanto isso, há 40 anos convivemos com uma escalada crescente da violência policial e nada mudaâ€, comparou. Se posicionou, ainda, a favor de que a investigação de crimes policiais passe a ser atribuição do Ministério Público, seja estadual ou federal. “PolÃcia que investiga polÃcia, é como ladrão que delata ladrãoâ€, disse.
Foi então a vez do coronel da reserva Jair Paes de Lira. “A audiência pública é muito importante, mas ouvi aqui muita certeza. Ouvi até promotor sugerindo a extinção da PM. Ele devia extinguir a instituição dele, começando por ele próprioâ€, acusou, e nesse instante já começou a ser vaiado. Parte do público se levantou e virou de costas, sob o coro crescente de “assassinoâ€. Com um pouco de dificuldade, o mediador trouxe o silêncio de volta ao auditório e devolveu a fala ao coronel. “Agradeço ao presidente da mesa, mas a reação era esperada porque é dessa democracia que essa gente gostaâ€, alfinetou, tendo de esperar mais uma onda de vaias passar para retomar sua fala, louvando “as mortes de bravos policiais que tombam no cumprimento do deverâ€. Nesse momento os policiais deficientes fÃsicos que estavam atrás da mesa levantam uma faixa com os dizeres “Com sacrifÃcio da própria vidaâ€.
Defesa
“Não estou defendendo práticas criminosas. Essas têm que ser devidamente investigadas. Mas a audiência pública não deveria ser agora, no calor dos acontecimentos, essa audiência que está carregada de ideologiasâ€, opinou. “Não é obrigatório por lei presumir a inocência até que seja provada a culpa? Não há porque linchar moralmente uma instituição secularâ€, concluiu.
A fala voltou, então, ao promotor MaurÃcio Ribeiro Lopes que pediu direito de resposta por ter sido citado objetivamente na fala do coronel. “Me espanta ouvir um PM fazer referência à presunção de inocência quando já tornou-se regra de sua instituição primeira atirar e depois perguntarâ€, afirmou, sob aplausos de parte do público e gritos de “é mentira!†por parte dos policiais presentes. Alguns, um tanto desequilibrados, se levantam e começam a gritar. “Não vão atirar em ninguém hein!â€, alguém grita das fileiras de trás.
Ânimos Acirrados
Os ânimos pouco se acalmaram com a fala do Major OlÃmpio, deputado estadual e presidente da frente parlamentar em defesa da segurança pública. Aos berros e com o rosto bastante vermelho, contou que ingressou na PM com 15 anos “e inúmeras vezes tive o desprazer de carregar o caixão de colegas. Os policiais é que vivem hoje um massacre de direitos humanos. Mudar o comando da PM dá mÃdia, mas não resolve nada. Esse achincalhamento da instituição da PM é um proselitismo eleitoreiro partidárioâ€.
O presidente da Associação de Policiais Militares de São Paulo, que não havia se inscrito, pediu que sua fala fosse antecipada e, sem paciência para esperar a ordem democrática dos que pediam a voz, se retirou, seguido por seus assessores, batendo na mesa da audiência, apontando o dedo e gritando com Carlos Weis, que os expulsou da audiência.
Passadas algumas falas e a volta de maior calma no ambiente, subiu ao microfone um policial civil que, segundo ele, está na profissão há 40 anos. “Dizer que a polÃcia é violenta é desconhecer a realidadeâ€, afirmou, em auditório lotado de familiares de assassinados por policiais. “Esse ano morreram 49 policiais em São Paulo. Isso é pouco? Saibam que 85% dos criminosos que a polÃcia pega são presos, e não mortos. Onde está a violência?â€, argumentou.
Matador Candidato
Rose Nogueira, do Grupo Tortura Nunca Mais, questionou como é possÃvel que se permita a candidatura do coronel Paulo Telhada a vereador pelo PSDB. Telhada conquistou a fama de “matador de bandidos†na década de 1980, quando era tenente da Rota. No último perÃodo, vem usando seu facebook para fazer apologia à violência policial. Uma de suas pérolas: “que chore a mãe do bandido, porque hoje o bote é certoâ€.
A advogada Sandra Paulini Silva, também ameaçada de morte e vÃtima de atentados, aproveitou a audiência para reiterar uma denúncia que vêm fazendo já há meses. O soldado da PM Júlio César Nascimento foi executado com 18 tiros em setembro do ano passado, na véspera de seu depoimento ao Condepe. “Vocês querem saber porque ele foi morto? Ele foi morto porque ele ia denunciar que o tenente coronel dele no batalhão chefiava um grupo de extermÃnio!â€, afirmou, exaltada.
Entre os encaminhamentos da audiência pública, que teve duração de mais de 5h, destacam-se: elaboração de documento a ser entregue ao governador, ao presidente da Alesp e todas autoridades competentes para exigir o fim do extermÃnio, pela revisão do programa disciplinar da PM, pela desmilitarização das polÃcias, reorganização do Gecep (grupo do Ministério Público que investiga a atuação policial), destituição do comando da PM de São Paulo, fim do registro de resistência seguida de morte, regulamentação do uso de armas letais e não letais, maior transparência, plano de afastamento de policiais envolvidos com assassinatos, comissão permanente e idônea de indenização administrativa com a reparação realizada em até 30 dias e a convocatória de nova audiência pública para daqui a 3 meses, bem como em 10 de dezembro, dia internacional dos direitos humanos.