Atualmente a sexta economia mundial, o Brasil também se destaca no ranking internacional de aprisionamentos. São aproximadamente 520 mil pessoas nos cárceres do paÃs, sendo que 40% ainda esperam pela acusação oficial, isto é, poderiam responder seus atuais processos em liberdade.
Dentro deste universo, sabe-se largamente da precariedade das prisões brasileiras, autênticas jaulas superlotadas do que alguns chamam de “descarte socialâ€. Além disso, os corredores de tais locais são permeados por tensas relações entre detentos e oficiais do Estado encarregados de vigiá-los. Somadas à s condições subumanas das celas, ocorrem freqüentes denúncias de abusos e violações dos direitos humanos dos presos, em muitos casos tratados como animais pelo Estado supostamente responsável por sua “ressocializaçãoâ€.
Diante da falta de condições dignas nas celas e do crescimento do encarceramento no paÃs (o número de detentos é 69% superior à capacidade dos recintos), nota-se um crescente desconforto social a respeito da situação, principalmente quando organismos internacionais começam a tomar ciência de que a violência oficial empregada contra a “delinqüência interna†é absolutamente desproporcional.
“Precisamos entender mais Loi Wacquant (sociólogo francês especialista em criminalÃstica) quando ele constata que a diminuição das polÃticas sociais sempre é seguida de aumento do número de prisõesâ€, afirmou Deivison Mendes Faustino, professor de História e Cultura da Ãfrica da UFSCAR, em ato de lançamento da revista PUC Viva no último dia 16, no prédio da universidade católica – a nova edição da revista tem como tema exclusivo o “Estado penal brasileiroâ€.
A análise de Faustino se sustenta no atual momento de crise econômica internacional, quando governos de todo o planeta anunciam seguidos cortes orçamentários nas áreas de interesse social, preteridas por polÃticas de resgate ao sistema financeiro. Ao lado disso, os sinais de que tal crise realmente assola o Brasil começam a ficar mais claros, bastando conferir as pessimistas previsões de crescimento para 2012.
“Precisamos entender quem ganha e quem perde, quem afinal lucra com isso. Ainda mais em épocas de eleição, com toda a sua espetacularização. Temos uma criminalização da pobreza ou do pobre? A pobreza é intrÃnseca à riqueza capitalista. De modo que, dentro desse sistema, o atual Estado penal poderia mesmo ser substituÃdo pelo Estado de Direito?â€, indaga Faustino, lançando um olhar polÃtico na abordagem do crescente número de prisões em nosso paÃs.
Uma urgente revisão geral
Com uma vasta massa que ainda não cabe em nossa atual sociedade de mercado, decerto também por nossas deficiências no campo da educação, a queda do crescimento econômico e, consequentemente, da oferta de empregos sempre cobram uma fatura visÃvel em sociedades menos desenvolvidas, nas quais os direitos essenciais da população ainda não foram assegurados.
“É necessário encarar de outra forma a questão das drogas e o aprisionamento em massa que ela gera. A prisão, de forma alguma, ressocializa alguém, muito pelo contrário, nunca resolveu e sempre criou mais revoltaâ€, pontuou a coordenadora da Pastoral Carcerária da Mulher, Heidi Ann Cerneka, na mesa de debate que mediou o ato.
Heidi destaca a questão, pois já é de amplo conhecimento o fato de que, em paÃses nos quais os governos declararam a chamada “guerra à s drogasâ€, verificaram-se enorme aumento do encarceramento, especialmente de jovens traficantes, e (paradoxalmente ou não) um simétrico crescimento do consumo de variadas substâncias ilÃcitas por lei.
Assim, gera-se uma percepção social nem sempre verdadeira que, em determinados momentos, assola cidades brasileiras: a de que a criminalidade estaria atingindo Ãndices alarmantes e seria necessário redobrar esforços em seu combate, o que aqui significa o reforço do poder de fogo do braço militar estatal. Em momentos assim, fica ainda mais difÃcil discutir os direitos dos infratores.
“É muito importante levantarmos bandeiras dos direitos humanos neste momento em que se constroem sensos comuns contra esses mesmos direitos humanos. Na minha vida de promotor penal, que incluÃa visitas a prisões, os presos nos mostravam bastões da polÃcia usados para agredi-los nos quais se podia ler ‘direitos humanos’â€, alertou Haroldo Caetano da Silva, um dos idealizadores do Programa de Atenção Integral ao Louco Infrator (Paili), também presente ao ato e, dentre outras histórias, refém da famosa rebelião comandada por Leonardo Pareja no Centro Penitenciário de Goiás, em abril de 1996.
Além de denunciar o alto grau de letalidade do Estado brasileiro na relação com suas camadas mais pobres, o encontro serviu também para denunciar uma especificidade pouco difundida ao público, mas que martiriza semanalmente os familiares dos presos.
“Os presos sofrem uma sobrepena, pois, além da pena que já cumprem, têm de conviver com a humilhação dos parentes. É uma situação comum, mas destaco especialmente a situação de São Pauloâ€, disse Andreia de Almeida Torres, membro do Conselho Regional de Serviços Social (CRESS).
Torres se refere ao fato, mote principal do ato, de que, em muitas prisões brasileiras, aqueles que visitam seus parentes passam por verdadeira via-crúcis, por vezes extremamente cruel, para alcançarem um momento ao lado de quem os fizeram sair de casa. “Nós passamos por muitas humilhações, pois os parentes que visitam seus filhos, maridos, primos presos também são ‘condenados’ pelos carcereiros e funcionários do presÃdio. Sofremos muitos abusos, qualquer suspeita que eles alegam já gera uma enorme repressãoâ€, contou Andrea MF, ex-presidiária e membro da Amparar (Associação de Amigos e Familiares de Presos(as)).
Ela ilustrou com um exemplo que, seguido da exibição de um curto vÃdeo que circula na internet, deixou atônitos e até sem reação uma boa parte dos presentes. Trata-se de procedimento qualificado pelos especialistas como “revista vexatóriaâ€. Geralmente, as mulheres são obrigadas a se despir completamente na sala de espera diante de uma carcereira, chegando finalmente a ficar de cócoras, de modo a deixar claro que não portam drogas em seu corpo. Em alguns casos, o(a) oficial não se contenta e leva a pessoa em questão para exames como raio-x em hospitais e prontos-socorros, fazendo o parente perder todo o dia em idas e vindas fajutas.
“Assim, sou vÃtima de um sistema que não reabilita. Não estou defendendo o preso naquele artigo em que foi condenado, e sim em outros direitos que não devem ser violados por causa dissoâ€, completou Andrea MF. “Por isso, precisamos estar atentos à s atuais discussões do novo Código Penal e da Lei de Execução Penal, nesses tempos tão conservadoresâ€, acrescentou Andréia Torres.
Apesar de estarmos habituados à s notÃcias a respeito da eterna “guerra†entre crime, em São Paulo simbolizado pelo PCC, e polÃcia, como se viu no sangrento bimestre junho/julho de 2012, nem sempre se reportam as mazelas das prisões, menos ainda em relação aos parentes visitantes. Alguns relatos soam inverossÃmeis, tamanho barbarismo empregado.
“Vemos essa história de cada preso custar 1500 reais por mês ao Estado. Onde está esse dinheiro? Pois o que sabemos é que servem comida podre, até com caramujo, nas refeições dos presos. Já vi parente meu falar que tinha vidro na comidaâ€, denunciou Andrea MF, em referência ao distrito penal da Baixada Santista, onde a relação crime-estado tem resultado em dezenas de mortes nos últimos anos, denunciadas até internacionalmente. “Ninguém sabe como é usado o orçamento dessa área, do sistema prisionalâ€, emendou Torres.
“Tenho cunhado, irmão e primo presos. E para ter comida boa, só se for da famÃlia mesmo, pois, como disse a colega, eles dão comida estragada, com qualquer coisa misturada. Eu e minha nora passamos pela mesma humilhação nas revistas, sendo que, em uma dessas revistas, ela perdeu um bebê de quatro mesesâ€, contou Rose, outra parente de prisioneiro presente ao ato, presenciado por algumas caravanas de parentes de detentos da Zona Norte da capital, Baixada Santista, entre outros locais do estado.
“Tenho 40 anos de Brasil e sempre me perguntei o que aconteceu neste paÃs para que o respeito à dignidade humana ficasse abaixo da sola do sapato. E hoje vejo cada vez mais juventude presa. Precisamos multiplicar encontros como o de hoje e informar mais a sociedade sobre essas realidadesâ€, espantou-se irmã Alberta, da Pastoral Carcerária.
No final do encontro, que ressaltou a necessidade de mais mobilização social pela defesa dos direitos dos presos e divulgação de sua destruidora estadia no sistema prisional, vários parentes aproveitaram o momento para divulgar semelhantes casos de abusos de direitos humanos, tanto de presos como de seus visitantes.
Não é simples se deparar diretamente com histórias tão repletas de sofrimento em carne viva, ainda por cima propiciadas pelo ente que deveria garantir dignidade e bem estar a todos. E é relativamente fácil nos apoiarmos em contextos paralelos de prosperidade para esvaziar a consciência de amarguras referentes a uma minoria de “degeneradosâ€. “Tem gente que acha que a prisão ressocializa. Há quem chame o preso de ‘reeduncando’. É muita hipocrisiaâ€, lamenta o promotor Haroldo Caetano.
Gabriel Brito é jornalista do Correio da Cidadania.