“Me contem, me contem aonde eles se escondem?
atrás de leis que não favorecem vocês
então por que não resolvem de uma vez:
ponham as cartas na mesa e discutam essas leis†Planet Hemp
A seção Cartas na mesa é composta por opiniões de leitores e membros do DAR acerca das drogas, de seus efeitos polÃtico-sociais e de sua proibição, e também de suas experiências pessoais e relatos sobre a forma com que se relacionam com elas. Vale tudo, em qualquer formato e tamanho, desde que você não esteja aqui para reforçar o proibicionismo! Caso queira ter seu desabafo desentorpecido publicado, envie seu texto para coletivodar@gmail.com e ponha as cartas na mesa para falar sobre drogas com o enfoque que quiser.
O texto dessa semana é de Eduardo Ribeiro, militante antiproibicionista baiano, que aponta com precisão: “Aprendemos com os mais importantes movimentos por direitos civis no mundo, como os da luta feminista, negra e pela livre orientação sexual, que chegou o momento das pessoas que fazem uso de drogas e todas as demais que são atingidas pela polÃtica proibicionista, também tomarem as ruas. Exigirem direitos. Ocupar os espaços de elaboração e execução das polÃticas públicas que nos atingem”.
Eduardo Ribeiro*
Ocorreu nos últimos dias de outubro em Salvador, a Semana Estadual sobre Drogas. O evento fez parte de uma agenda convocada pelo Conselho Estadual de Entorpecentes, junto a SUPRAD, Superintendência de Prevenção e Acolhimento aos Usuários de Drogas e Apoio Familiar da SJCDH. Em dois dias de audiências públicas, levamos ao debate dois dos principais temas da polÃtica sobre drogas no Brasil hoje: o papel das Comunidades Terapêuticas e a internação compulsória de usuários e usuárias de drogas e as mudanças em curso no Brasil no âmbito penal para o tema das substâncias psicoativas.
A agenda coincidiu com a realização na cidade do primeiro encontro da Rede Latino-Americana de Pessoas que Usam Drogas (LANDUP) que reuniu militantes, intelectuais, impressa especializada, pessoas que usam drogas, de diversos paÃses do continente. Presenças como México, Costa Rica, Argentina, Colômbia, Peru, além de cinco estados brasileiros.
Na audiência pública do CONEN, compartilhei a mesa com o Senhor Daniel Nicory, Defensor Público, professor da Faculdade Baiana de Direito, e representante da Associação Nacional de Defensores Públicos na comissão de juristas que tem formulado as propostas de Reforma do Código Penal junto à Câmara de Deputados; o Dr. Laco, médico, membro da Coordenação de PolÃtica sobre Drogas do Estado de São Paulo, além da Superintendente Denise Tourinho (SUPRAD) e o Secretário Almiro Sena (SJCDH).
Existe hoje no Brasil um conjunto de projetos em curso para a mudança da legislação sobre drogas. Os principais projetos em pauta nas casas hoje são o anteprojeto de mudanças no Código da Câmara de Deputados; o PLS 236/12, em tramitação no Senado, que também propõe a Reforma do Código; e a proposta encaminhada pela Comissão Brasileira Sobre Drogas e Democracia ao presidente da Câmara Marco Maia, através do Deputado Paulo Teixeira (PT/SP). Além disso, o deputado Osmar Terra (PMDB/RS) já havia apresentado o PL nº 7663/2010.
Uma das mudanças fundamentais em pauta hoje busca conferir maior eficácia para um quesito já existente na lei atual (a 11.343/06), que diferenciaria traficantes das pessoas que fazem uso: a quantidade. A Subcomissão Especial de Crimes e Penas da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) aprovou que a ANVISA determine a quantidade equivalente a cinco dias de consumo como limite para o porte. Uma nova tentativa, onde o dispositivo penal, não mais colabore tão absurdamente com a superlotação carcerária no paÃs e a sua aplicação não mais incorra na criminalização da pobreza. Segundo dados do INFOPEN, departamento de informações penitenciárias do Ministério da Justiça, a população carcerária no Brasil nos últimos cinco anos aumentou cerca de 118%, desde a aprovação da última lei de drogas.
A internação compulsória de pessoas que fazem uso abusivo de substâncias psicoativas e se encontram em situação de rua, outro ponto em debate, tem recebido a aceitação na grande mÃdia a partir da polÃtica do governo do Rio de Janeiro que, sem nenhum cuidado com os direitos fundamentais, afirma que pretende internar adultos compulsoriamente, moradores e moradoras de ruas e “obrigá-las†ao tratamento. A aceitação das polÃticas de internação não só contraria os melhores resultados na atenção ao uso abusivo de drogas, como vai de encontro à s importantes conquistas da luta antimanicomial na Reforma Psiquiátrica. Busca-se empurrar as pessoas que fazem uso abusivo de drogas quando em situação de rua para dentro dos muros dos lugares que já chamamos manicômios. O PL do Deputado Terra busca regulamentar a internação compulsória enquanto polÃtica de Estado, investir nas comunidades terapêuticas e reduzir o papel da rede pública de atenção.
Além da grande mÃdia, setores religiosos com tamanho importante no governo federal hoje pressionam no sentido de destinar mais recursos públicos para a manutenção das comunidades terapêuticas, refazendo o discurso onde o sistema público de atenção não funciona e patrocinar essas iniciativas seria o caminho mais curto para o governo dar atenção ao uso abusivo de drogas. Sugiro a leitura do relatório da 4° Inspeção de Direitos Humanos realizados pelo Conselho Federal de Psicologia.
Cabe lembrar que a partir do próximo ano, as comunidades terapêuticas passarão a receber verbas do SUS, regulamentadas pela RD29 e portaria 131 do Ministério da Saúde. Na Bahia, 10 comunidades estão cadastradas na SUPRAD e recebem hoje recursos públicos para o seu financiamento, oriundos do Fundo de Combate a Pobreza.
Após o calendário das audiências, iniciou-se o encontro da LANPUD. O evento contou com explanações importantes que apresentaram o quadro do Teatro da Guerra à s Drogas na América Latina, tema do primeiro dia. Percebemos que, ainda que contenham suas particularidades, a violação aos direitos fundamentais, a repressão e o estigma são denominadores comuns das polÃticas proibicionistas no continente. Além disso, um alerta foi dado ao incremento do encarceramento feminino relacionado aos crimes de tráfico. Compus a mesa de encerramento, junto com o vereador eleito no Rio de Janeiro, Renato Cinco (PSOL), militante de muitos anos da luta antiproibicionista no Brasil e organizador da Marcha da Maconha. O tema da mesa foi a “Internação compulsória e a criminalização da pobrezaâ€.
Ao final do segundo dia foi aprovada a Carta de Salvador, com assinatura das entidades e um comitê polÃtico composto por um/a delegado/a de cada paÃs presente que deve se reunir na IV Conferência Latino-Americana de PolÃticas sobre Drogas, em dezembro na cidade de Bogotá.
Estamos agora organizando em Salvador o Lançamento da Frente Estadual de Entidades pela Cidadania, Dignidade e Direitos Humanos na PolÃtica sobre Drogas, uma iniciativa dos Conselhos Federais de Psicologia e Serviço Social, em parceria com outras entidades, inclusive a recém criada Associação de Pessoas que Usam Drogas de Salvador.
A atenção ao tema das drogas no Brasil hoje, apesar de viver esse momento de ampliação do debate, construção de novas iniciativas dos movimentos sociais e possibilidade de uma mudança real no campo legislativo, acontece num ambiente “inflacionado†pelo pânico moral em torno da questão do crack, que aciona o uso abusivo da drogas como o próprio mecanismo de exclusão social e marginalidade, o fazendo como bode expiatório para a desigualdade social. (Interessante que o termo fármaco, droga, vem do grego pharmakos, de pharmakon – uma expressão similar a bode expiatório, segundo Escohotado). A visibilidade da cena de uso agride a classe média mais até do que o próprio cenário de negação de direitos.
Definir o uso de crack hoje como uma epidemia não é apenas uma deturpação do conceito da epidemiologia, mas também uma forma de promover a aceitação das medidas extremas. O termo caracteriza-se pela incidência, de grande número de casos de uma doença, a partir de um vetor de contaminação, em curto perÃodo de tempo. Epi (sobre) + demos (povo). O abuso de drogas não é contagioso, assim como não há um vetor que o promova. Além do mais, o uso de crack (contando os abusivos e não) não chegam a 1% da população brasileira. Enquanto o uso de tabaco e álcool, muito mais disseminados, causam mais danos à s pessoas e gastos aos serviços de saúde. Dizer que há uma ‘epidemia de crack’, pressupõe a possibilidade de medidas sanitárias de cunho higienista e abuso de poder e negação de direitos em nome da “saúde públicaâ€.
Aprendemos com os mais importantes movimentos por direitos civis no mundo, como os da luta feminista, negra e pela livre orientação sexual, que chegou o momento das pessoas que fazem uso de drogas e todas as demais que são atingidas pela polÃtica proibicionista, também tomarem as ruas. Exigirem direitos. Ocupar os espaços de elaboração e execução das polÃticas públicas que nos atingem. Denunciar os ataques aos direitos humanos cometidos contras as pessoas que fazem uso de drogas, promover a circulação de informações mais responsáveis acerca do uso e abuso e derrubar o estigma é importante para promover um melhor ambiente para o debate. Enquanto isso, investir na Rede Pública de Atenção ao Uso Abusivo (CAPS-AD, NASF, Consultórios de Rua), promover pesquisa e permitir uma mudança legislativa que coloque o Brasil entre as grandes nações que tem buscado uma outra saÃda para o tema do uso de drogas, construindo a Redução de Riscos e Danos e reduzindo o encarceramento em massa.
Eduardo Ribeiro, Dudu, é formado em História pela UFBA, militante da Esquerda Popular Socialista do PT e membro da Rede Latino-Americana de Pessoas que Usam Drogas.