LuÃs Fernando Tófoli*
Em suas manifestações públicas em relação ao projeto de drogas que redigiu, o deputado Osmar Terra (PMDB-RS), médico e ex-secretário de Saúde de seu estado, tem sido profÃcuo ao citar dados. Em uma declaração ao jornal O Globo, ao criticar o viés “ideológico†daqueles que objetam contra seu projeto, não hesitou em dizer que “cada parágrafo†dele seria “baseado em evidências cientÃficasâ€.
Foto: Torben Bjørn Hansen/Flickr
Dados cientÃficos são frequentemente incompletos, sujeitos a contingências metodológicas e difÃceis de interpretar. A própria construção do que é uma evidência cientÃfica e a decisão de nortear polÃticas a partir delas são também opções ideológicas, embora os médicos não se deem conta disso. No século XXI já parece ser bastante claro que não existe Ciência absolutamente neutra, e que é na análise de estudos que apontam posições e resultados contraditórios que poderemos nos aproximar da realidade. Esse é, por excelência, o caminho possÃvel no campo das polÃticas públicas sobre drogas.
O PL 7663/2010 de Osmar Terra – transformado no substitutivo do deputado Givaldo Carimbão (PSB-AL) – está longe de ser uma peça legislativa baseada em dados cientÃficos inquebrantáveis. Para começar, o projeto parte da concepção de que a dependência quÃmica é uma doença cerebral que leva a alterações permanentes causadas pelas drogas, uma doença para a qual não existe cura e para qual o único tratamento possÃvel é a abstinência. Essa premissa é desafiada na literatura cientÃfica recente, e certamente não pode ser tomada como uma verdade para todos os casos. Como explicar, por exemplo, os vÃcios que não envolvem substância psicoativa, como o jogo patológico? Ainda que essa concepção da dependência fosse assumida como correta, caberia examinar se o projeto de lei, a fim de amenizar o terrÃvel sofrimento social causado pelas drogas, está suficientemente assentado em evidências cientÃficas. Vejamos aqui algumas que foram ignoradas no processo de elaboração do PL.
Em primeiro lugar, o projeto faz uma grande trapalhada ao emaranhar dependência quÃmica com uso de drogas. A literatura mostra claramente que o contingente de dependentes das drogas ilegais mais comuns no Brasil é algumas vezes menor do que o número total de usuários. PolÃticas e eventuais medidas para estes grupos devem ser distintas. Ao misturar os conceitos, o projeto dá a chance, por exemplo, de que um usuário leve de maconha seja submetido a uma versão contemporânea da internação forçada apresentada no filme Bicho de Sete Cabeças, de LaÃs Bodanzky.
Outra confusão feita pelo PL está na proposta de uma classificação das drogas por seu potencial de gerar dependência. A ideia é baseada em uma classificação feita pelo Reino Unido e não é delineada no texto legislativo, ficando para ser decidida posteriormente. Atualmente há crÃticas à própria classificação britânica, e um famoso estudo[1] publicado na respeitável revista cientÃfica Lancet colocou em cheque a própria noção de que seriam as drogas ilegais as mais daninhas para o indivÃduo e a sociedade.
Não bastasse isso, o projeto ainda aumenta a pena para tráfico de drogas, sem distinguir usuários de traficantes de forma objetiva. Considerando o desproporcional aumento de apenados por tráfico no Brasil dos últimos anos – muitos deles com um perfil muito mais próximo de usuários do que de traficantes perigosos – tomar uma medida como essa sem determinar critérios objetivos de distinção é bastante temerário, ainda mais se considerarmos que o próprio endurecimento legislativo pode ser confrontado. Por exemplo, na Europa, o consumo por adolescentes é menor em paÃses onde há menores restrições para o porte e uso pessoal de drogas. A resposta que o deputado Osmar Terra tem dado – que é o de que os “aviõezinhos†iriam carregar somente a quantidade permitida para porte e que “ninguém mais vai ser preso†– não é condizente com os dados do Observatório Europeu de Drogas e Dependência[2], que mostra que em paÃses que se tornaram menos rigorosos com o uso e porte de drogas, as prisões por tráfico não diminuÃram.
O autor do projeto já disse que as ações de consultório na rua – proposto como uma das alternativas à s duas únicas formas de tratamento presentes no PL, a internação compulsória e o acolhimento voluntário em comunidades terapêuticas – não têm evidência de efetividade. Pode ser que o enfoque das provas cientÃficas feito pelo deputado revele também um viés ideológico, já que o mais respeitável repositório de Medicina baseada em evidências, a Biblioteca Cochrane, indica que não há provas suficientes[3] para apoiar o modelo das comunidades terapêuticas no tratamento da dependência quÃmica. Além disso, segundo afirma Gilberto Gerra[4], do Escritório das Nações Unidas para o Crime e Drogas, também não há evidências que justifiquem o uso de internações forçadas a não ser em situações crÃticas de risco de vida e quando outras tentativas não tiverem dado certo – o que, aliás, já determina a atual lei brasileira que dispõe sobre os tipos de internação psiquiátrica.
Há muitos outros pontos problemáticos – como o financiamento de entidades religiosas, o cadastro de usuários de drogas, as formas estranhas de regulação de um sistema de tratamento paralelo ao Sistema Único de Saúde, só para citar alguns. Num projeto tão questionado – rejeitado ou fortemente criticado por notas técnicas do Governo e por ONGs, por pareceres de entidades como a Fundação Oswaldo Cruz, o Instituto dos Advogados Brasileiros e o Conselho Federal de Psicologia, e até pela opinião de polÃticos de posições opostas na arena eleitoral como o deputado Paulo Teixeira (PT-SP) e o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) – a presença de evidências cientÃficas que contradigam seus parágrafos deve ser mais um elemento para, no mÃnimo, refrear o regime urgente em que o projeto tramita e, no limite, sepultá-lo em definitivo na busca de respostas mais consensuais.
Mas, no Brasil, onde “polÃtica baseada em evidências†se confunde com “evidências baseadas em polÃtica†e a mÃdia – com honrosas exceções – ajuda mais a embaralhar e estigmatizar a questão do que estimular o debate qualificado, é bem possÃvel que as evidências sejam soterradas pela urgência polÃtica vinculada ao atual projeto em tramitação. Aguardemos para ver o que os legisladores brasileiros têm a responder diante deste projeto que representa um conjunto de retrocessos mÃopes à pesquisa cientÃfica e à s reais e sérias demandas de cuidados que a questão do uso problemático de substâncias impõe a este paÃs.
*LuÃs Fernando Tófoli é professor de Psiquiatria da Universidade Estadual de Campinas
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