É com muita satisfação que apresentamos a primeira edição do Boletim É de Lei. Desde já, passa a ser um periódico online que trata de temas relacionados à  redução de danos sociais e à saúde associados ao uso de drogas e às atividades da organização.
Nesta primeira edição, três textos abordam três questões relacionadas, mas diferentes:
Para contato, comunico.edelei@gmail.com
Boa leitura!
Qual é o poder dos conselhos municipais? Comitê editorial debate relação entre membros da sociedade civil organizada e autoridades públicas no ambiente dos conselhos municipais.
É de Lei realiza ação Inside Out na vale do Anhangabaú. Usuários e trabalhadores da organização colam cartazes gigantes, demarcando simbolicamente suas presenças no espaço público. (FOTO: Wendel Pimentel/ 2012)
Os protestos de junho foram marcados por questionamentos sobre o poder público no Brasil. Entre as interpretações, tornou-se quase consenso que haveria uma “crise de representação†no paÃs. Um extremo, expressivo mas pouco consequente, pedira que os partidos abaixassem suas bandeiras, sinalizando serem eles mesmos, independentemente da coloração, o mal politico da Nação. Outra ponta, mais vinculada ao histórico democrático de lutas, cobrou formas de intervenção diretas mais consequentes junto ao poder público. O Movimento Passe Livre, principal catalisador do processo, fora um dos porta-vozes da defesa do aprofundamento da democracia direta na esfera dos transportes, reivindicando participação social em decisões que iriam desde a definição das rotas do ônibus até a implementação da tarifa zero.
O aprofundamento da participação popular passa atualmente por debates em torno da reforma politica, da possibilidade de candidaturas independentes, do financiamento exclusivamente público das campanhas eleitorais, do poder decisório de referendos e plebiscitos etc. Passa também pela ampliação do poder decisório das instancias paritárias de debate, como os conselhos municipais, estaduais e federais. No entanto, a experiência do É de Lei e de outras organizações próximas sugere que tais instâncias parecem resumir-se mais a espaços de debates do que de deliberações, configurando, na prática, espaços de referendo “democrático†das decisões do poder executivo.
A regra acentua-se especialmente em questões delicadas. Recentemente, o Conselho Nacional de Saúde votou posicionamento contrário à proposta de internação compulsória de usuários de drogas. O Principal perigo atual na legislação de drogas é o PL37, de Osmar Terra e Givaldo Carimbão que acabou de ser aprovado como PL7663 na Câmara e está para ser votado no Senado. Esta lei, que complementa a lei de drogas de 2006 vai permitir a internação compulsória feita por servidores do estado, quaisquer que sejam, maior pena para o comerciante de drogas e um sistema de financiamento das comunidades terapêuticas. Grande maioria dos Conselhos Estaduais sobre Drogas se pronunciaram contra, assim como diversas áreas do próprio governo. No entanto, como já se desenha, independentemente da opinião do conselho, o poder Executivo sinaliza que pretende atropelar tais opiniões.
É de Lei realiza ação Inside Out na vale do Anhangabaú. Usuários e trabalhadores da organização colam cartazes gigantes, demarcando simbolicamente suas presenças no espaço público. (FOTO: Gerson Roberto/ 2012)
Em outras áreas a mesma dinâmica polÃtica é verificada. Na onda proibicionista, a grande maioria da população brasileira se posicionou a favor do endurecimento das leis penais, em especial, da redução da maioridade penal de 18 anos para 16 anos. Uma vez que tal iniciativa flagrantemente fere princÃpios constitucionais, a proposta passou a ser a ampliação do tempo de internação das medida sócio-educativas de 2 anos para até 8 anos, por meio de alterações no Estatuto da Criança e do Adolescente. O Conanda (Conselho Nacional da Criança e do Adolescente) já se posicionou contra. Mas quanto vale sua opinião?
Desde o inicio dos anos 2000 , o É de Lei trabalha com redução de danos associados ao uso de drogas na região denominada de “Cracolândia†e integra o Comuda (Conselho Municipal de PolÃticas Públicas de Drogas e Ãlcool), criado em 2002, durante a gestão de Marta Suplicy na Prefeitura de São Paulo. Embora sirva para trocar experiências e agregar profissionais da área, parece, mais uma vez, um protótipo de democracia direta, com membros indicados pelo Executivo e sem poderes deliberativos.
Entre seus objetivos, figuram: “propor e acompanhar a execução da polÃtica municipal de prevenção ao uso indevido de drogasâ€, e “coordenar, desenvolver e estimular programas de tratamento, recuperação e reinserção social de dependentesâ€, bem como “otimização e capacitação de recursos humanos para o trabalho de prevençãoâ€. Como de praxe, é composto paritariamente por membros do Estado e da sociedade civil, todos indicados pelo prefeito, sendo seis representantes de secratarias municipais, um da Guarda Civil Municipal, quatro de comissões parlamentares, e, da sociedade civil: quatro da sociedade civil organizada, dois da comunidade acadêmico-cientÃfica, três de outros conselhos relacionados, um da OAB, três do governo Estadual e um da mÃdia local.
Aparentemente, temos uma organização horizontal, multifacetada, composta por gente que entende o que fala. Mas o que se decide de fato no Comuda? Sob a atual gestão petista, a elaboração do “Plano intersetorial de politicas sobre crack, álcool e outras drogas†envolveu uma rara preocupação de debate com a sociedade civil e atraiu para sua coordenação nomes vinculados à s lutas pelo tratamento não criminalizatório e antimanicomial, como Dartiu Xavier (PROAD/UNIFESP) e Aristeu Bertelli (Assessor especial para PolÃticas sobre Drogas do municipio). Enquanto representante do Fórum Intersetorial de Drogas e Direitos Humanos, o É de Lei foi chamado pela Secretaria de Saúde Municipal a contribuir.
Entre outras medidas, o plano apresentado em agosto prevê, até 2016, criar 60 Centros de Referência de Assistência Social (CRAS), 7 Centros de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), e cinco Centros de Referência Especializado para a Populaçao em Situação de Rua (Centros POP). Na área da saúde, apresenta a proposta de abrir mais 26 CAPS AD e transformar os atuais em CAPS AD III, funcionando 24 horas.
É de Lei realiza ação Inside Out na vale do Anhangabaú. Usuários e trabalhadores da organização colam cartazes gigantes, demarcando simbolicamente suas presenças no espaço público. (FOTO: Gerson Roberto/ 2012)
Apesar da disposição dos gestores municipais, a distância entre governo e sociedade bem como a lógica eleitoral parecem ser problemas mais fundos, difÃceis de solucionar a curto prazo. Formas de deliberação pouco democráticas, especialmente quando relacionadas a problemas delicados, acarretam consequências nefastas na qualidade das polÃticas públicas, redundando em erros muitas vezes anunciados pelas organizações civis. É o caso do recente Espaço de Acolhimento Intersetorial: uma tenda montada este ano na rua-marco da Cracolândia, R. Helvetia, com o objetivo de acolher usuários de droga em situação de rua.
A disputa com o governo estadual parece ter forçado um lançamento da tenda antes mesmo da elaboração de um plano de ação, com capacitação de funcionários, definição das atividades e devido estabelecimento de espaço adequado. No dia em que se inaugurou, em 22 de Julho, verificamos que havia quatro funcionários na tenda e nenhum usuário de droga. Os funcionários não sabiam exatamente suas funções e nem banheiro para usuários havia – estrutura mais do que óbvia. Ou seja, no lançamento, um espaço inócuo.
A tenda, como foi batizada, está apenas no inÃcio e o É de Lei apóia a inciativa, torce para que tenha sucesso, e, como sabe a secretaria de Saúde, atua e continuará atuando para contribuir no conceito e na execução de suas atividades. Mas o exemplo é sintomático de uma prática de decisão polÃtica que não integra a sociedade civil enquanto ator na promoção do bem público, fatalmente redundando em erros grosseiros, como o exposto.
Se um grito genérico ocupou as ruas por mais participação polÃtica, agora alguns ganham mais concretude e objetividade, como aqueles relacionados aos transportes públicos, à democratização da mÃdia, à descriminalização das drogas, à desmilitarização da polÃcia e ao sistema eleitoral. Neste marco, fica exposta a necessidade de aprofundamento das instancias democráticas, dando-lhes maior poder de penetração nas deliberações sobre as polÃticas públicas. Tarefa difÃcil, visto que o poder parece ter mais atração sobre os polÃticos do que o cachimbo sobre os usuários.
Em primeira pessoa, o redutor Thika Calil apresenta impressões do trabalho na região da chamada “Cracolândiaâ€
“Invisible cracksâ€, de Keren Chernizon. DisponÃvel em:http://kerenchernizon.com/#/invisible+cracks
Na calçada à minha esquerda converso com um homem. Ele tem aparentemente 50 anos e me pede protetor labial. Conta que é de são Tomé das Letras – MG, a “cidade da magia†ele diz. Saiu de lá quando sua filha morreu em 2001. Disse que ele mesmo fez o parto dela no Rio Doce, no EspÃrito Santo, perto de Linhares. Começa a me contar sua história. Neste momento penso na necessidade que ele tem de conversar, e valorizar de onde veio. Começo a ouvi-lo quando uma garota jovem se aproxima e pergunta para este homem se a garrafa ao lado dele está com água ou cachaça? Olho e vejo que ele tem uma garrafinha de plástico quase pela metade.
Ele responde:
-      “Ãguardente!â€.
Ela diz:
-      “Então me dá um pouquinho pro dente!†e ri!
Ela dá um gole de cachaça e me conta que está com o dente inflamado e doendo, e que ao bochechar a cachaça no dente a dor passa. Abre a boca e me mostra o dente ruim. É o dente do fundo, lado direito. Uma forma de cuidado interessante. Precária, porém interessante, e provavelmente eficaz no alÃvio da dor.
“Invisible cracksâ€, de Keren Chernizon. DisponÃvel em:http://kerenchernizon.com/#/invisible+cracks
Na Dino Bueno o bazar está montado. Cobertores esticados na rua viram um mostruário de produtos. São diversos: roupas, lingerie, caixa de som, bolsas, sapatos, pilha, quadros, rádios, etc. Encontramos seu Zé na rua, em frente ao seu bar. O bar da pista. Neste bar sempre toca uma música, em alto volume, da Jukebox.
Ele está conversando com algum usuário. Nos cumprimenta e está bastante sorridente. Aponta para o aglomerado de usuários e diz:
– “Olha só! todo mundo junto! eles ficam direto aÃ. Tô aqui a 15 anos com o bar e foi sempre assim. Ninguém quer tratar eles com respeito, mas é tudo gente boa. Se você vai conhecendo, o pessoal é gente boaâ€.
Ele comenta do bazar e tem a mesma impressão que eu. Seu zé diz:
– “Montam um shopping! Vê se pode, tudo espalhado assim no meio da ruaâ€.
Seu Zé diz que está cansado e que vai embora no fim do ano. Vai deixar o bar, “passá-lo para frenteâ€, para os outros ali da região. Perguntamos se pensa em voltar para a Bahia e ele diz que não:
– “Tudo que tenho tá aqui, famÃlia, propriedades e etc. lá eu não tenho nada.â€
Enquanto conversávamos com seu Zé, ficamos os três observando uma mulher se aproximar de uma das ‘lojas’ do bazar. Uma loja modesta. Simplesmente uma esteira esticada na rua e um homem sentado. Ao seu lado uma bolsa da Louis Vitton. A mulher conversa, negocia, exita, e de longe vemos que ela acaba comprando a bolsa por 12 reais. O homem que a vendeu logo levanta e o vejo em meio ao grande grupo de usuários. O fluxo.
Estaria ele já negociando com os 12 reais? É provável. O efeito troca imediata do bazar da cracolandia. O fluxo. Tudo circula! Tudo vira pedra e a pedra vira tudo. Começa a tocar “Infinita Highway†dos Engenheiros do Hawai no Jukebox do bar de seu Zé.
 Relato sobre o curso “Drogas e direitos humanosâ€, que, durante nove semanas, informou pessoas em situação de rua sobre seus direitos e sobre polÃticas públicas disponÃveis
Terminou em agosto o curso “Drogas e direitos humanosâ€, promovido pelo Centro de Convivência É de Lei. O objetivo foi propiciar à s pessoas em situação de vulnerabilidade social e trabalhadores da rede de atendimento conhecimento sobre seus direitos e sobre polÃticas públicas relacionadas, para que pudessem melhor reivindicá-los e articulá-los perante o Poder Público.
Sob o prisma da redução de danos, durante nove semanas, o curso abordou conteúdos como violência policial, justiça criminal, direitos sociais, direitos de crianças e adolescentes etc. Especial atenção foi dada ao direito à saúde, com ênfase na polÃtica de combate ao HIV/Aids e na polÃtica de saúde mental.
A percepção de que todos – independentemente das diferenças, vÃcios ou virtudes – somos sujeitos de direitos abre a possibilidade para que os usuários de drogas em situação de rua possam lutar contra injustiças, não se conformando com os estigmas, com a negação de atendimento, com internações forçadas sem necessidade, e outras formas de descaso e abuso do Poder Público.
A experiência reforçou a necessidade e urgência de abertura de canais de diálogo entre usuários, trabalhadores e gestores na elaboração das polÃticas, para que articulem valores dos direitos humanos com polÃticas mais consequentes.
A partir de agora, inicia-se a segunda fase do projeto, que consiste na implantação de uma “ouvidoria comunitáriaâ€, focada em denúncias de violações de direitos humanos sofridas por usuários de drogas em situação de rua.
Uma cartilha com os conteúdos básicos abordados no curso está sendo distribuÃda entre os usuários. Baixe aqui a versão digital da Cartilha Direitos Humanos 2013 É de Lei .
PS: O projeto é patrocinado pelo Ministério da Saúde e pela UNODC.