Me contem, me contem aonde eles se escondem?
atrás de leis que não favorecem vocês
então por que não resolvem de uma vez:
ponham as cartas na mesa e discutam essas leisâ€
Planet Hemp
Nesta edição de Cartas na mesa*, voltamos a apresentar um relato de viagem psicodélica em primeira pessoa, desta vez enfocado em uma experiência com as moléculas de DMT que fazem da Ayahuasca uma substância tão profunda e cultuada. O autor é Felipe Molina Ferrer e o artigo completo segue abaixo.
Fim do inverno austral, equinócio de primavera
Creio que dirigi por uma hora e meia em avenidas e rodovia de tráfego intenso até chegar ao local. Gomos de Mexerica, boa música, papo sobre dúvidas e curiosidades do que será do final de semana. Descubro que, por sorte, não ter bebido nada alcoólico no dia anterior foi bom para mim, importante para se aproveitar bem o que estava por vir (não sair na noite de sexta foi bom, coisa rara). Um pouco de cansaço e muitos litros de combustÃvel queimados em prol de ansiedade e curiosidade, grandes expectativas. Outras três pessoas estão comigo na viagem.
Chegamos ao endereço muitas horas antes do momento combinado. Descarregamos os pertences necessários para aproveitar o momento, destaque para roupas e cobertores para nos agasalharmos muito bem, flores para decoração e quarenta reais de cada um como “colaboração pelo local, pessoal, experiência, estadia e refeições disponibilizadasâ€. Apresento-me a um dos moradores, um dos responsáveis pela manutenção da beleza na jardinagem e paisagismo dessa imensa área verde. Cumprimentos, abraços fraternais. Uma árvore forte, alta e grossa se apresenta também. É uma paineira. O senhor que recém conheci depois nos contaria que, a seu ver, a árvore “lembra†a divindade Ganesha. Em certo grau de abstração ou sensibilidade, realmente é possÃvel identificar as semelhanças entre ambos. Eu vi Ganesha.
Agora estou noutro ambiente, uma casa. É necessário tirar os calçados para conhecer esta grande casa de móveis, decoração e arquitetura refinada/aristocrata-moderna, do tipo capa da revista “Casa e Construçãoâ€. Outras pessoas cumprimentadas com mútuos sorrisos e fraternidade, capazes de disfarçar meu mirrado olhar investigativo. Uma das moças do nosso grupo fica nesta casa, sobe para um dos quartos. “Ela dorme aqui porque ela é chiqueâ€, me é explicado. Rimos desse fato. SaÃmos da casa, nós dirigirmos aos dormitórios pouco afastados. Depois de alojados, bem agasalhados e munido de dois cobertores, caminho em direção a outro espaço do sÃtio, o local mais importante da noite, bonito, imponente e bem iluminado, localizado no final de uma pequena trilha sem nenhuma iluminação. A temperatura começa a cair, inicia o clima “glacialâ€.
A imagem luminosa do rosto de Santo Antônio sobre o poste de madeira é a primeira peça decorativa “inusitadaâ€. Ela é o que tinha restado de uma festa junina realizada por lá, o pau de sebo, de prêmios longos fitilhos presos ao Santo, parado ao lado do enorme “santuárioâ€, este, feito basicamente de vidro, madeira e palha. Geométrico, talvez um trapézio, enormes vidros como paredes, alicerces de madeira, pé direito altÃssimo, teto de alinhamento transversal ao piso de madeira. Diversas lâmpadas de tungstênio penduradas por longos fios fazem a iluminação (destas várias lâmpadas, apenas algumas estão acesas, o que já suficiente para bem iluminar o local). Ao centro, pendurado por um longo fio preso ao teto, um lindo painel bordado com imagens santas, imagem do mestre fundador também. Há outros quadros e imagens espalhadas no santuário, destaque o grande mural com a imagem de uma santa católica, posicionada atrás da mesa onde estão as flores “Copo de Leite†que trouxemos no porta-malas, jarros com Ayahuasca, maçãs, velas, tudo sobre uma bela toalha de mesa branca. No chão de madeira, diversas almofadas coloridas estão distribuÃdas em cÃrculos, organizados sobre esteiras de palha. Aparelhagem de som profissional no centro, caixas de som suspensas, presas aos alicerces de madeiras, alguns aquecedores a gás também. Descalços, nos acomodamos nas esteiras das mais centrais. Poucas pessoas estão presentes, ainda me são estranhas e não apresentadas. Organizo meu espaço, resolvo tirar as lentes de contato. Deito, quero dormir, estar complemente descansado para quando começar.
O frio continua o mesmo. Cochilo diversas vezes, desperto várias vezes para saber quantos estão presentes, quem são, que fazem para se preparar. Ansiedade. Perdi a noção de tempo (o relógio está na mochila muitos metros afastada dalÃ). A grande sala está cheia. Somos cerca de quarenta pessoas, vejo os rostos e percebo que estou fora da faixa etária média, 35 anos talvez. Os modos, roupas e grifes de cada em nada importam ou identificam, nenhum padrão de cor e modelo nas vestes, exceto a cuidado/preparo com o frio. Quase todos se conhecem, conversam, riem como amigos, são Ãntimos e familiares. Sou apresentado aos poucos. Conheço um dos donos do sÃtio, um dos fundadores do santuário. Senhor sereno, com a idade do meu pai talvez. Voz grave e calma, fala pausadamente. Sou apresentado a outro rapaz, moço. Seria o “assistente†do senhor “mestre de cerimôniaâ€. Rápido bate papo com rapaz, algo assim:_ Você tem alguma dúvida, curiosidade, quer saber de algo antes de começar?_ Não, prefiro não pensar em nada, tentar não criar nenhuma imagem, conceito ou razão sobre o que acontecerá. _ Mas você está ciente que irá receber uma substância com diversas propriedades, que agirá de diversas maneiras no seu corpo e mente, que trará sensações e pensamentos que provavelmente você nunca teve, né? Você pode ficar assustado talvez. _ Sim. Alguma sugestão de como me concentrar, lidar com medo?_ Respire, se concentra na respiração, independente do que aconteça. Respirar bem, acompanhar a respiração te ajudará a ficar atento, a não se perder. Caso você se sinta mal, você pode sair, ir até o banheiro, ficar um pouco do lado de fora. Pode ocorrer de você sentir enjoo, precisar vomitar. É normal, à s vezes acontece, até com quem toma há mais tempo. Vontade de ir ao banheiro também acontece de vez em quando, mas fica tranquilo, igual ao enjoo, é uma “limpezaâ€, um elemento estranho entra pela primeira vez no teu corpo, pode jogar algo pra fora._Bom saber! (risos) Obrigado… Seu nome mesmo?“Pâ€. _ É um prazer!
Volto a esteira/cama um pouco preocupado com algo que poderia ser tão forte, incomodo a ponto de me provocar uma diarreia. Sei lá, vomitar-me todo, sem controle também. Um pouco horrorizado. Trágico. Outro rapaz muito simpático senta-se ao meu lado, revela outra dica muito importante, algo como:
_Olha, além de ser importante e ajudar muito a história da respiração, uma boa dica também é focar em si mesmo, criar uma espécie de bolha. Não liga para como os outros estejam, se estão bem ou não, que estão fazendo. Foca no seu “casuloâ€, terá pessoas que estarão acompanhando, observando tudo para ajudar a quem precisar. Ninguém te fará mal ou te machucará. Não interfira na “bolha†dos outros, isso pode criar um desconforto, tirar a concentração do outro._Muito obrigado pela dica!
Poucos minutos depois, o “mestre de cerimônia†(que se chama “Râ€) convida a todos para ficarem de pé, nos posicionarmos formando um cÃrculo único. Ele declara palavras introdutórias do porquê de estarmos alÃ, palavras importantes para o momento mas que, infelizmente, sou incapaz de lembrar-me agora. É uma espécie de apresentação, marco do inicio do processo, “trabalhoâ€. “R†pede que filas sejam formadas para receber a Ayahuasca. Aos que nunca a experimentaram, dirigir-se a fila dele. Creio que sete pessoas estão nessa fila comigo. Na minha vez, acompanho o senhor servir a bebida (no copo há uma marca que indica até onde se enche a dose). Ao me entregar o copo, diz: “deus te proteja†(Ou “deus te guardeâ€? não me lembro bem). Bebo o conteúdo do copo de uma vez só. Volto a meu lugar um pouco assustado com o “deus te protejaâ€. A intensidade da luz é diminuÃda ao mÃnimo. De um tocador de mp3 começam músicas, “rezas†de frases simples, refrãos fortÃssimos, lindos, “hináriosâ€. Som alto vindo das caixas de som. Forte cheiro de um incenso agradável. Estamos sentados, alguns poucos deitados. Olho atentamente a imagem de santo Antonio e seus fitilhos balançando com o vento do lado de fora. A copa das árvores balançando, luz da lua.
Olhar estático, fixo à natureza do lado de fora do santuário, a consciência em alerta, atenho-me a qualquer mudança sensorial ou psÃquica, respiro profundamente. Pouco tempo depois, sinto a região do peito levemente aquecida, o abro um pouco mais para favorecer esta que seria a primeira mudança. Sorrio. O leve calor passa aos ombros e braços. Agora a sala está em silêncio, apenas ouço o leve ruÃdo que as caixas de som emitem por estarem simplesmente ligadas. Acompanho o movimento dos fitilhos presos a Santo Antonio, sinto a sensibilidade da pele alterando-se. Me esforço em respirar profundamente, tremo com suavidade. Ainda estou muito atento a qualquer anormalidade, assim, concentrar-se na respiraração torna-se complicado. Olhos arregalados, fixos nas lâmpadas do teto (as vejo apenas como pequenos feixes, estou sem os óculos ou as lentes de contato). O som das caixas de som tornar-se incomodo. Tremo demais, deito-me para me enrolar melhor nos cobertores. Forte cheio de incenso, leve falta de ar, insuportável ruÃdo das caixas de som. Incomodado, decido fechar os olhos para acalmar-me. Milhares de cores, linhas e formas geométricas simples porem bem desenhadas, nÃtidas e frenéticas demais me assustam no rápido fechar e abrir dos olhos. A respiração está totalmente descontrolada. Além do barulho constante das caixas de som, ouço tosses, cobertores se mexendo, estalos, sussurros com incrÃvel nitidez. Olho para a Ela sentada ao meu lado, está estática. Olho para os “mestres de cerimôniaâ€, que sentados manuseiam papéis, textos, conversam entre si e com outros que se dirigem até eles. Vejo os que caminham até eles, conversam e voltam a seus lugares como enormes vultos, minha visão enxerga os movimentos destes com atraso, formam-se imagens atrasadas. Respiração longa e cansativa, frio, leve enjoo, o tato “esquisitoâ€. Algum tempo se passa, estou estático, apenas vejo luz e, a cada piscadela, imagens elétricas, intensas e coloridas (como uma tevê que não funciona, em um chuviscado colorido e rico de formas simples). Tenho medo, falta de ar, um pouco paranoico também. Começo a me questionar se fiquei “malucoâ€, questiono se o que sinto e vejo é “real”, se ainda estou deitado no mesmo lugar de tempos atrás, na mesma posição naquele santuário junto daquelas pessoas ou se, na verdade, estou em qualquer outro lugar, noutro dia, de outra maneira. Além do ruÃdo insuportável das caixas de som, todos os outros sons estão altÃssimos e levemente distorcidos, em tom diferente. Me viro de lado, miro para as pessoas ao meu redor, para o lado de fora. Neles, nada mudou significativamente. Frente ao meu olhar surgem “feições†de outras imagens que “não estão aliâ€. São apenas silhuetas de traços trêmulos, luminosos. Vi semelhanças com imagens de deuses hindus. Um pouco transtornado e enjoado, gélido, um pouco de psicose. Preciso respirar, muito.
Me levanto,caminho com cuidado entre os outros para não atrapalhar os “processosâ€, “trabalhos†ou “loucurasâ€. Depois de abrir a porta de acesso à parte externa do santuário e ao banheiro masculino, pouco depois de pisar descalço do lado de fora, vomito. Pouco lÃquido sai, a ânsia é muito maior que o sufoco e confusão mental. Muita ânsia mas pouco vômito. Me sinto fraco, vulnerável à insanidade, choro ou maior psicose. Não lembro bem qual era a sensação, não sei descrevê-la ou entende-la bem. Parado frente à grama e a noite, em pé, levemente curvado para frente, saliva e vomito pingam de meus lábios e queixo. A grama é assustadora, a noite é assustadora, mas os sons do vento e das árvores me acalmam. Afasto-me da grama, piso em pedras ao lado de umas das entradas, sinto perfeitamente todas as pedras tocarem a sola de meus pés. O som é incrÃvel, tão nÃtido, “toca†meus ouvidos. Caminho um pouco sobre as pedras. Frente ao banheiro, nova confusão mental. São dois acessos ao banheiro, ao lado da porta do santuário e outro paralelo a entrada do banheiro feminino. O pequeno caminho de pedras passa frente a estas entradas, as duas entradas permitem quase a mesma visão do banheiro. Não sei o que entrada, espelho ou parede. Vou e volto olhando pelas duas entradas. Depois de titubear um pouco nas entradas, vou até a pia do banheiro. O primeiros goles de água são maravilhosos (horas antes, tinham me avisado que a águas das torneiras são potáveis e deliciosas). O barulho da água saindo da torneira, ruÃdo tranquilizante, novo fôlego e energia. Dentro da pia, muito próximo donde estão minhas mãos e boca, uma aranha preta, de tamanho mediano. A olho fixamente enquanto bebo água. Vejo-a com os mesmos olhos do taro, espelho simbólico. Fecho a torneira e tomo o cuidado de não olhar para o espelho real logo acima da pia, tenho medo de um choque psicológico, assustar-me frente a minha própria imagem tao conhecida e Ãntima, aquela que sempre entendi como o conceito e realidade/fato de mim mesmo expresso no rosto, um rosto que agora é perceptÃvel por outros olhos, outra mente, raciocÃnios de “outra pessoaâ€. Um rapaz para ao meu lado (não o percebo chegar) e pergunta se eu estou bem. Respondo afirmativamente. Ele vai embora e agora ouço passos e voz feminina sussurrando algo (para si mesma talvez). Vejo caminhando na grama uma moça (na verdade, apenas a metade de baixo dela. A parte de cima da moça está impedida pelo teto de palha do banheiro). Caminha na minha direção. Fico estático, tenso, tenho medo de olhar para o rosto dela. Ela me pergunta ou comenta sobre cigarros, seu desejo, repulsa ou qualquer coisa que não fui capaz de entender e para as quaisquer simplesmente respondi “não fumo maisâ€. Ela vai embora e eu desvio do espelho outra vez. Muita sede, mais água. Entro em um dos sanitários, fecho a porta com toda vagareza. Com a mesma vagareza abro o cinto e o jeans (o tato e coordenação motora estão diferentes). Enquanto urino, a visão do banheiro se mistura a discretas linhas douradas, que no meu entender desenham alguma figura hindu. Penso: “por que raios imagens hindus, ainda mais durante um simples xixi?!†Não faço a menor ideia. Chacoalho a cabeça, a imagem desaparece e se apresenta outra vez rapidamente. Na saÃda de ali, os olhos passam rapidamente pelo espelho e encontram o olhar e expressão frágeis, um pouco acuados talvez. Volto todo o rosto para o espelho e me olho por alguns segundos: olhar um pouco preocupado, “em alertaâ€, porém calmo e quieto, concentrado. Volto ao céu e o vento, respiro tranquilo, me sinto forte e pronto a entrar no santuário novamente. Não sinto tanto do frio agora, ele tornou-se pequeno demais nesse tempo que fiquei do lado de fora, vinte minutos talvez. Não tenho curiosidade em saber as horas.
Está quente dentro do santuário, o ruÃdo das caixas de som não incomoda mais. Ao deitar me dou conta que a imagem de Santo Antonio está apagada, vê-se apenas a silhueta e leve brilho dos fitilhos do Santo. Não fecho os olhos. Existe paz dentro de mim mas eu não a tenho, apenas a assisto. Dou um suspiro profundo, muito profundo. AlÃvio? não sei. Fim de um medo? Talvez. Sorrio. Faço a minha paz na segurança que agora tenho da “alteração do ser†que começo a entender/viver com certa tranquilidade. Tomo coragem de fechar os olhos. Há luz, ainda é enérgico, porém com menos cores, menos formas. Outro longo suspiro agora. Riso. Aos poucos a sensação de calor volta ao corpo a ponto dos pés ficaram totalmente descobertos. Estou ótimo, forte, maravilhado com alguma coisa incompreensÃvel. Suspiros sorridentes. Olho encantado para a lua e o movimento da copa das árvores. Agora, pensar esse movimento e luz me impressiona. Eu conheço tudo isso faz tempo, mas agora tudo isso me parece mais real, sensÃvel ou vivenciado. Respiro profundo, toco meus dedos e pulsos buscando mais dessa vivencia e sensibilidade. Um bocejo enorme, delicioso. Parece que acordei de uma hibernação que durou anos, tempo que passei de olhos abertos.
No teto do santuário surgem cenas que não sei dizer exatamente o que são, sonhos ou lembranças, sentimentos ou vontades, algumas: meu avô paterno, com rosto tranquilo, leve sorriso amarelado, rosto sério, provocador  junto de momentos negativos de nosso passado. No instante seguinte: as imagens e sensações ruins desaparecem do rosto e ações dele. Agora o vejo alegre, importante e feliz junto comigo. Digo: “vô, obrigado por tudo.†Minhas tias maternas aparecem. São tantos sorrisos, tantos momentos bons que simplesmente digo: “obrigado†(digo para mim mesmo, sereno, com olhos e rosto pasmo, maravilhado). Meu pai, aparece no teto do santuário (ou no fundo dos meus olhos, sei lá). Tremo emocionado. Lembro de ótimas e péssimas lembranças, alguns traumas fortÃssimos (cenas em fhases) e também dos prazeres, momentos e sentimentos que vivemos juntos. Tudo se mistura em poucos minutos, tudo se apresenta agora como feito pelo bem de nossas vidas, pela gozo da experiência da vida, tudo a custo de muita tempo, estórias, alegrias e tristezas, pacÃficas e caóticas. Tudo isso para que, nesse momento, eu me perceba realmente vivo. Rapidamente, uma constatação maravilhosa, tola/inocente e reveladora ao mesmo tempo: “Eu estou vivo! Caramba, Recebi o “presente†de nascer, experimentar tanta coisa, sentir e raciocinar tudo o que for possÃvel até agora! Que maravilha! Cara, olha onde eu estou, junto destas pessoas que estão deitadas aqui junto comigo! Eu sou essas pessoas, sou parte de todos e da natureza, somos a vida!†Meo, eu nasci e tenho 26 anos! Sei que vivi porque tive e tehno sentimentos por essa menina que agora surge na minha frente depois de quinze anos. Nossa, éramos tão crianças, mas já estávamos percebendo a grande maravilha da vida, apenas em segurar as mão um do outro, caminhar um ao lado do outro. “Mâ€, obrigado por ter se revelado, ser parte dessa experiência mágica da vida. Suspiro. Quanta coisa passou, quanta gente ou vivi! Vejo amigos que já não sei onde andam. Estamos em uma praia que fora por várias vezes tardes de total alegria, dezebs de horas intensas. Rapidamente me lembro de brigas, tão rapidamente digo a mim mesmo em voz baixa: “me desculpem, fui tão idiota com vocês, como pude pensar em fazer mal a vocês!†Os vejo acenando positivamente (igual a meu avô paterno). Recebo/ouço respostas de alguns: “me perdoaâ€, “me desculpaâ€, respostas de pessoas que eu nem lembrava. Que engraçado, tolo e lindo: viver bem exige toda desculpa e arrependimento, compartilhar de amizade, prazeres e sensações .Agora penso: não me lembro da última vez que pensei sobre essas coisas, isso se teve algum momento da minha vida que me dediquei profundamente a pensar sobre isso. Será que isso é o Amor de verdade por qualquer ser ou coisa?! Respiro fundo, animadÃssimo. Meu avô materno, mãe, minhas avós, os rostos aparecem, sorriem, acessam com os rostos, se apagam! Cara, viver é isso, é essa energia toda?! Que absurdo,isso é maravilhoso! Tremo de felicidade, sinto vontade de falar, muita vontade, mas não o faço para não incomodar quem está ao meu lado. Minha mãe, fantástica, um presente divino! Vejo o casal de amigos que recém tiveram o primeiro filho passarem no “telão mentalâ€: a “mágica†da vida, a biologia perfeita da ciência universal materializada em uma nova vida, agora somada a grande experiência que a é existência terrena, fÃsica, sensÃvel e inteligÃvel. Olho para os lados, todos estão aqui ali. A maioria sorri (as vezes, nem está sorrindo porém eu o sinto, os “vivo†com sorriso no rosto). Agora, mais do que nos tempos e ocasiões e pensamentos que tivemos juntos, “materializando-nosâ€, sei que estamos bem, temos um pouco da energia um do outro. Volto o rosto para o teto. Agradeço a vida, agradeço a Deus! Eu falando de Deus, ateu, frio e cientista que sou?!… IncrÃvel, nós somos Deus, somos a carne e o divino! Entender e explicar a existência, senti-la e vive-la é tão incrÃvel que todos somos capazes de criar culturas, linguagens, ciências, doutrinas e modos de vida para reconhecer, viver (as vezes, erroneamente, guerrear), compartilhar o que elemento divino nos pede: amar e cuidar da vida, compartilhar o amor e respeito a vida. Porra, o fator/elemento/sensibilidade divina antes não estava comigo porque eu era incapaz de sê-lo, não me peritia senti-lo no meu mundo, corpo, mente e racionalidade! Quando tempo perdi negando parte da vida por luxo mental, racional. Apático por ter criado um mundo e entendimento racional limitante, no qual o divino não se legitimava por simplesmente por não estar na minha linguagem construÃda e fechada, na minha sensibilidade pouco aflorada. Poxa, penso agora que provavelmente a apoteose é a união harmônica do sensÃvel, racional e divino a favor do amor e existência (tudo bem, aos olhos da razão, entender e viver dessa forma também é buscar saber-se, entender-se vivo, parte da natureza, parte do universo material conectado ao divino via racionalizações, linguagens e doutrinas. Bom, sou um cientista e “ateu†muito mais vivo agora!) Como cientista “vivo”, agora toma a “ousadia†que viver a união das ciências com o sensÃvel e o divino. Por que não?! Novas variáveis ao método cientÃfico, agora a razão tem novos aliados para entender e gozar a vida e amor. Agora permito a consciência tornar-se maior, buscar novos limites de ser e pensar.
Importante frisar: não, o mundo (ainda) não é perfeito aos meus olhos, todo sensÃvel e inteligÃvel para que eu me torne “todo amor e bondadeâ€. O que acontece é que agora sim, agora tenho certeza que é totalmente possÃvel atingir a graça existencial, harmonia total do material e o recem descoberto -sensÃvel e vivido- fator divino, agora é lógico e Natural pensar na “arte da vidaâ€. Arte, como instantes de percepção e expressão divina, unida da sensibilidade e razão presente na natureza. A arte seria agora algo em si mesma e também algo que se faz quando atravessa o material, o sensÃvel, racional e divino. O ser permite a si mesmo e a sua realidade conhecer-se por inteiro quando atravessa todas as expressões e percepções. Torna-se, vive como artista. Engraçado lembrar-me de um rascunho (desenho em lápis) feito há mais de dez anos durante toda essa “loucuraâ€, momento de aprendizado. Agora me sinto capaz de refazer esse rascunho desvalorizado nas aulas de desenho artÃstico, passado brlhante e remoto. Engraçado, me sinto criança outra vez por pensar que seria este momento o qual passaram alguns dos meus Ãdolos de infância e adolescência, de hoje e sempre. Será que é isso que o Pink Floyd, Jimi Hendrix, Raulzito, Led Zeppelin, Doors e os Mutantes sentiram, viveram?! Agora deitado, estático, imagino que poderia pegar lápis e papel outra vez e torná-los milhares de coisas (bonitas, apreciáveis ou não). Hilário, demais também!!Alternando com os momentos de silêncio, diversas músicas tocam no santuário. Nenhuma é totalmente conhecida. ImpossÃvel lembrar-me de todas as melodias, sons e silêncios, as cadências que me estimulam cada vez mais. Tudo bem, depois daqui, volta e meia quando ouvir qualquer musicalidade semelhante, parte destas provocarão sensações e pensamentos próximos do que tenho agora.
Depois de um momento de silêncio, “P†começa a leitura de um texto. Folhas de papel sulfite são iluminadas por uma lanterna. Olhar atento ao rosto e palavras vindas dele. O tema de leitura é medo. Imagino que todos que estão aqui querem absorver ao máximo todas as palavras lidas do texto. Absorvendo as frases juntos, cada um em seu tempo e maneira. Em algumas, concordamos um pouco mais ou um pouco menos. Momentos de seriedade e de boas gargalhadas (não foram poucas!). Algumas vezes, seriedade e humor frentes a tantos medos que temos de nós mesmos. Medo frente ao próprio ego, medo de enfrentar nosso conceito, estrutura e linguagem para nos identificarmos e entendermos com nós mesmo frente a realidade e vida que este mesmo ego entende como mundo e existência. Tudo isso, nesse instante, do lado de fora do santuário. Medo de mudar ou abandonar parte do nosso ego, muitas vezes porque temos medo que não nos identificarmos mais, deixar de ser entendido por si mesmo e pelo que estão ao nosso redor. ExercÃcio perigoso vasculhar dentro de nós mesmo em busca de humanismo, amor, paz e felicidade e não encontrar nada. Medo de não encontrar nada! Ouço, penso e sinto tanta coisa, é impossÃvel explicar, enumerar e coisificar metade de tudo que absorvi da leitura. Capaz de eu ter entendido outra coisa que não era a intenção do autor e do leitor do texto, quem sabe.
Sinto que o efeito da Bebida está passando. Vejo do outro lado do santuário a outra moça que veio conosco. Está sentada, sorrindo. Vez ou outra alongasse os braços, costas e cintura com graça. Mais música, mais silêncio. Somos todos convidados a outro copo de ayahuasca. Eu não aceito, sinto que a “vibração†que atingi é fantástica e deliciosa demais. Formei um corpo, do tempo e vida do casulo para as asas, quero vivê-lo um pouco mais. (Talvez, em algum ponto sólido do meu inconsciente e ego, tenho medo de ir ainda mais além da capacidade de viver meu fÃsico, mental e divino, medo de avançar ainda mais nos limites e estruturações mentais de mim mesmo e natureza ao redor via ayahuasca). Em uma nova fila, um casal faz aos que quiserem enriquecer ainda mais a experiência desta noite um espécie de passe energético, um contato com as energias/vibrações uns dos outros. O homem todo de branco apoia as duas mãos sobre a minha cabeça. Sinto minha cabeça e a mão dele pulsarem. É um super “Reikiâ€
Luz baixa, muitos deitados e sentados, “sozinhos†em seus lugares, silêncio. Pouco atrás de mim, sentado, alguém bate ao chão os pés ou algo de madeira, bate com pouca força e muito ritmo. O “trabalho†dessa pessoa deve estar intenso. Alguém se aproxima dos “mestres de cerimôniaâ€. O rapaz está agitado, deita-se ao lado deles, levanta , mexe a cabeça repentinamente, volta a deitar “tranquiloâ€, estático. Com certeza o “trabalho†está mais que intenso por ali. Ao mesmo tempo em que a agitação dele me assusta, há intervalos, instantes vivenciados por mim (provavelmente por esse rapaz também) que a paz nos invade: ele recebe abraços e afagos longos, delicados em modos, fortes em ternura. Imagino: no estado de alteração que ele está, deve ser como uma fusão de amor, ligação direta. Literalmente unem-se o amor dos corpos, uma mistura de nascimento, orgasmo, paz e morte/renovação em poucos instantes. Penso: será que é possÃvel transar sob efeito da ayahuasca, ter corpo, mente e vivencia divina para sobreviver a tal experiencia e orgasmo?
Outra leitura por outros olhos e voz. Agora é um diálogo de deus com a natureza, a humanidade em especial. É o momento ideal de ateus e crentes falaram com seus próprios deuses e razões. A quem importa se eu ou você não reconhece deus ou o aspecto/elemento divino? Haveria alguma culpa, inocência, ignorância ou insensibilidade em não reconhecer deus(es) em suas várias formas, culturas, filosofias, imagens e linguagens? Existiria o errado ou certo frente ao divino? Pensar, lembrar ou viver o divino é um dever? Para estas e outras perguntas sempre surgirão respostas, teorias, doutrinas e histórias de vida, vindas de qualquer ser ao redor do planeta. O único que nunca que terá perguntas, respostas ou questionamentos é o divino. Este, independente como você o entende, reconheça ou negue, te amará, lhe dará amor e viverá o amor contigo independente de como você ama-lo, explicá-lo ou reconhecê-lo. O divino não quer afirmação, reconhecimento ou graça, não quer saber de desculpa, repúdio ou guerra. Se ele diz algo à humanidade, imagino agora que seria próximo de: “Ame o máximo que puder, cuide da vida, compartilhe o amor e a vida.†Não importa a quem ou que, me parece agora que tudo tem amor dentro de si. Àquilo que fizer bem a meu corpo e a quem amo, a quem eu entender em minha linguagem, universo simbólico e história de vida como “bem†em ação ou postura, tornar-se-á “eu mesmoâ€, participará com mais intensidade da minha experiência existencial, seremos mais prazer e paz no compartilhar de vida e amor. Aquilo que me fizer mau (a integridade fÃsica ou sentimento, por exemplo) ou a quem me desejar em maldade (seja lá o que este entender por maldade, em posicionar-se contra a vida e o amor), minha ação ou argumentação, ou ausência destas, será amorosa. Irá me machucar, matar, fará mau ao que amo? Bom, algo farei para manter-me vivo (óbvio), haverá algum tipo de resistência ou “lutaâ€, mas esta será pelo seu amor, a favor de algo, não contra algo. Não sou contra ao mal que você me faz, sou a favor do bem que podemos fazer um ao outro. Importante lembrar a mim mesmo: não me tornei (ainda) discÃpulo de Gandhi, Jesus, Madre Tereza ou  de qualquer outro, mas o meu pensamento, sensibilidade e ação a partir deste momento serão tratados, sondados pela sensação e vivência do amor. Amanhã posso ser totalmente insultado no trânsito, baterem no meu carro, alguém cuspir na minha ética ou rosto e tenho certeza que queimarei em ódio e maldade bem menos que antes, a vontade que terei de fazer churrasco do ser (abrir exceção no meu vegetarianismo), o desejo de torturar até a morte toda a famÃlia – e advogados – deste ser será muito menor. Não tenho o botão “acionar amorâ€. Viver o amor é pratica e aprimoramento. Claro, boa respiração, longa e profunda, sexo frequente e harmonia nas questões cotidianas, polÃticas e de consumo ajudam na prática do amor também.
Leitura e proveito do texto incorporada, mais músicas deliciosas para ouvir.Agora o ritmo é de “baladaâ€, música bem alta, contemporânea, “popâ€. Muitos se levantam, dançam uns com outros da maneira como gostam ou entendem. Toca um remix agitadÃssimo de “Rhythm is a Dancerâ€. (Brega? Que importa, estamos felizes pra caramba!) Toca alguma versão ao vivo de “Tempo Perdido†da Legião Urbana. Os outros explodem em dança e canto. Eu mesmo, fico deitado de olhos e sorrisos a eles. Por que não danço? Tá tão boa minha cama de vida (o medo do ridÃculo talvez não tenha sido totalmente superado). Também sou pouco simpático da maioria das músicas da Legião, são cansativas.
De volta as esteiras de palha, contamos nossas experiências. Há de tudo: fim de alguns medos; maior respeito à vida; descoberta de faces e vivências do amor; fim de angustias pessoas ou familiares; realizações na prática do vegetariano/veganismo; descrições dos bons e maus momentos da experiência desta noite; rumos, buscas e motivações para a vida cotidiana; busca de harmonia a relação vida/trabalho/dinheiro/padrões econômicos da vida; etc. Reluto em contar um pouco da minha experiência. A Pessoa a meu lado sussura o “empurrãozinho†necessário para eu compartilhar o Ãntimo e, ao mesmo tempo, de/para todos.
Terminou. Abraços, alegria, dobrar cobertores, sentir fome e sede. Agora sou mais sociável, mesmo com as minhas particulares dificuldades de diálogo com completos desconhecidos. Frio e fome. O frio voltou com toda força, ainda mais quando é necessário ir e vir da cozinha (sem paredes, brisa glacial por todos os lados) do lado de fora do santuário. Prato principal: deliciosas tortas de legumes, queijo e alho poró. Deliciosas, porém, “congeladasâ€: o microondas demorou a cooperar com a jantar de todos. Eu mesmo, com baita fome, como as tortas do jeito que estão. O Iluminado que arrumou o microondas é um senhor de meia idade, responsável pelo som e iluminação do santuário. Detalhe: além de ter morado em Cajamar vinte anos atrás, também bebeu ayahuasca pela primeira vez essa noite. Bate papo gostoso sobre vinte anos de mudanças. Volto ao santuário para mais um pouco de papo e sono. Meu grupo se despede de todos. Boa noite, Santo Antonio.
Acordo totalmente descansado. Não sei que horas é, ainda não quero saber disso. A primeira coisa a se fazer depois de abrir os olhos é cumprimentar a vida, a natureza e sol do lado de fora do quarto. Abro a porta de correr, encontro o deck ensolarado, Ãntimo, rodeado de papiros e o lago, enorme. As árvores que cercam a trilha até o santuário, o próprio santuário do outro lado do lado (as almofadas que utilizamos na noite anterior, empilhadas formando um muro colorido), toda a natureza e árvores ao redor do lado, um pomar mais ao fundo talvez. Viro de costas em busca de uma almofada, todos acordados, olhando, sorrindo. Bom dia! Me pedem para deixar a porta aberta, despertarão com o todo o Sol e vida intensos sobre os olhos. Passo muito tempo admirando o fato de estar vivo, ainda mais ali, frente à quela apoteose da qual me permiti viver. Várias respirações profundas, olhos fechados, carÃcias aos papiros e outras plantas. No banho da manhã, canto à vida: deixo meu celular tocando Jorge Ben Jor ao lado do box. Sempre é bom cantar no chuveiro, ainda mais cantar Jorge depois de ter despertado para tantas coisas. Um passeio pelo sÃtio antes de procurar os outros e o café da manhã. Pulos na cama elástica (de tão descoordenados os pulos, quase me quebro todo), visita a outros ambientes anexos aos dormitórios. Descubro a flor de papoula, fantástica, vermelho intenso com gotas negras ao centro.
Mesa do café da manhã. Querendo ou não, raciocinando sobre ou não, todos se tornaram mais amigáveis e colaborativos a meus olhos. Comemos muito bem. Conversas aleatórias: semi joias com pedras; dinheiro e como atraÃ-lo (jogo do dinheiro, harmonia na aritmética e fluxo de energia junto do dinheiro, outras coisas mais que pouco entendi); os saborosos pães integrais; geleias de morango por R$10,00; montanhas-russas, Skycoaster e chapeis mexicanos. Prontifico-me a lavar um pouco da louça suja. Simpáticos pratos decorados de algo azul, parecido com mosaicos da arte abstrata islâmica, limpos outra vez.
Fora da casa e cozinha, começam as despedidas. O cão mais arisco e desconfiado do lugar se aproxima e se despede de mim. Quem estava ao redor, não entende a aproximação do cão, eu tampouco. Afagos. Despedida do sÃtio/retiro/SPA espiritual. Passeio entre as árvores. Visita à pequena capela marrom, aconchegante, teto de palha trançada, de lustres simples e belos, imagens católicas e um lindo Buda espelhado (aqui deve ser maravilhoso tomar ayahuasca). Ao lado da capela, pedras artificiais, algumas são caixas de som, outras pontos de iluminação. Andar na horta, um pouco de botânica e cana de açucar. Despedida à enorme paineira “Ganeshaâ€. Rápido pulo na Sauna, banho de sol também . Almoço rápido: tortas de ontem, deliciosas e quentÃssimas! Adeus a todos, abraços apertados, última olhadinha nas flores ao lado dos dormitórios. Cobertores e roupas no bagageiro. Infelizmente, carro outra vez. O portão automático se abre, volto ao trânsito sinuoso e perigoso outra vez. Tendo pessoas amadas ao lado, um último sorriso: a feliz coincidência de chegar e sair do sÃtio ao entardecer, na troca da guarda do Sol e a Lua.
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*A seção Cartas na mesa é composta por opiniões de leitores e membros do DAR acerca das drogas, de seus efeitos polÃtico-sociais e de sua proibição, e também de suas experiências pessoais e relatos sobre a forma com que se relacionam com elas. Vale tudo, em qualquer formato e tamanho, desde que você não esteja aqui para reforçar o proibicionismo! Caso queira ter seu desabafo desentorpecido publicado, envie seu texto para coletivodar@gmail.com e ponha as cartas na mesa para falar sobre drogas com o enfoque que quiser.