Quem é preso e morto são os pobres, os negros, os favelados. O que existe é uma guerra contra a pobreza. Quem tem poder na sociedade está preocupado com o seu próprio umbigo. Corações e mentes não se mobilizam pela questão penitenciária.
Essa é a questão de fundo da crise exposta no presÃdio de Pedrinhas, no Maranhão, na análise da socióloga Julita Lemgruber, 67. Coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Candido Mendes, ela foi diretora-geral do sistema penitenciário do Rio de Janeiro entre 1991 e 1994.
Fernando Rabelo/Folhapress | ||
A socióloga Julita Lemgruber, 67, ex-diretora do sistema penitenciário do Rio |
Para ela, a superlotação das prisões, combustÃvel para as tragédias, ocorre pelo estrangulamento do sistema: muitos estão presos provisoriamente de forma ilegal e outros tantos não conseguem livramento condicional. “Essa máquina não funciona e é perversa”, diz.
Na sua visão, não adianta construir novos presÃdios sem resolver a “gangrena” sistêmica do sistema prisional. Mais do que intervenção, é preciso que o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) retome os mutirões permanentes nas cadeias, opina.
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Folha – Como a sra. avalia a situação no Maranhão?
Julita Lemgruber – O que está por trás de grande parte das tragédias que acontecem no sistema penitenciário é a superlotação, que é combustÃvel certo para tragédias. A situação do Maranhão é limite: presos são tratados com extrema crueldade e desumanidade. Isso naturalmente provoca uma ebulição interna que acaba transbordando para fora dos muros. Não se consegue conter a violência dentro dos muros. Ela acaba transbordando nos incêndios de ônibus e a postos policiais.
E por que há superlotação?
A superlotação é resultado de dois problemas, um na entrada e outro na saÃda. Um percentual enorme de presos provisórios está preso ilegalmente. No Rio, acabamos de fazer um estudo que será lançado em uma semana chamado “usos e abusos da prisão provisória”. A situação do Rio não é diferente do resto do Brasil. Ao contrário, há Estado em que a situação é muito pior. Quase 50% dos presos provisórios no RJ estão presos ilegalmente.
Montamos um banco de dados com milhares de casos que acompanhamos até o final. Metade desses homens e mulheres que estavam presos provisoriamente não recebeu uma pena privativa de liberdade: ou foram absolvidos ou tiveram uma pena diferente de prisão. Eles estavam presos ilegalmente. Provamos isso aqui no Rio de Janeiro nesse estudo feito ao longo do ano de 2012 e que reúne todos os casos de prisões em flagrante. Há uma ilegalidade brutal e isso se repete no Brasil todo. As pessoas são presas e ficam mofando nas delegacias.
A defensoria não tem condições de se dedicar ao caso dos presos provisórios; ela mal consegue acompanhar os julgamentos e depois a execução da pena. Os presos provisórios ficam literalmente abandonados até o momento do julgamento. Isso é um escândalo no Brasil todo.
Por que essa situação não encontra ressonância e se repete?
Isso se repete porque quem é preso no Brasil é preto, pobre, negro, favelado: aquele grupo de pessoas que não tem voz, que são consideradas sem direitos na sociedade. Corações e mentes não se mobilizam pela questão penitenciária. Quando um polÃtico diz que a violência está contida nos muros, o que ele está dizendo é: “Não nos preocupemos; se eles se matarem o problema é deles”. Nunca a violência esta contida dentro dos muros.
Quando a violência chega a esses nÃveis insuportáveis, fatalmente transborda dos muros. Vira preocupação quando acontece um grande escândalo, como o dos presos decapitados em Pedrinhas. No dia-a-dia, o que acontece dentro dos muros é completamente ignorado.
Qual é o problema que dificulta a saÃda de presos e também provoca superlotação?
Um número enorme de presos já tem direito a benefÃcios legais. Mas eles não são concedidos porque essas pessoas não têm defesa adequada. Em alguns Estados, levantamentos mostram que 50% dos presos teriam direito a livramento condicional. Essa máquina não funciona. É uma máquina perversa, que joga para dentro do sistema com muita facilidade e que tem um funil estreitÃssimo do outro lado; não resolve os casos de presos que têm direito a benefÃcios legais.
Construir novas prisões adianta?
A primeira coisa que se precisa fazer é resolver o estrangulamento do sistema penitenciário, que acontece na entrada e na saÃda. Para isso, não é preciso fazer novas unidades. Precisa resolver esse problema, ponto. Se não, vamos construir mais e mais unidades, e elas vão estar sempre superlotadas. Porque não se resolveu o problema central que é o estrangulamento da saÃda e a entrada.
A sra. comandou sistema penitenciário do RJ nos anos 1990. A situação hoje é pior?
A situação penitenciária piorou muito porque aumentou muito o número de presos, que triplicou nos últimos 15 anos no Brasil. E o número de presos condenados por tráfico de drogas triplicou nos últimos cinco anos. Essa questão precisa ser encarada sem hipocrisia. Quem é o preso por tráfico de drogas? Em alguns Estados, até 80% das mulheres presas é por trafico de drogas. Elas são grandes traficantes?
Pesquisas mostram o perfil do preso por tráfico de drogas no Brasil: é o pequeno traficante, que não tem nenhum poder na estrutura do tráfico, que é facilmente substituÃdo quando é preso. Estamos enxugando gelo. Estamos produzindo uma quantidade enorme de presos ligados ao tráfico de drogas, quando se sabe que essa guerra antidrogas é falida no mundo inteiro.
E a legislação?
A legislação hoje diz que o usuário não é mais penalizado com pena de prisão. O uso continua sendo crime no Brasil, mas o usuário não deve receber pena de prisão. Mas, se for usuário negro e morar na favela, mesmo que seja encontrado pela policia com uma pequena quantidade, vai para a cadeia. Se for um usuário branco e, dependendo do local onde mora e da sua situação socioeconômica, pode ser encontrada com uma quantidade muito maior de drogas, e o que acontece? Ele vai subornar a polÃcia ou vai convencer o policial de que não precisa traficar como meio de vida. A polÃcia prende o preto, pobre e favelado. Mesmo com pequena quantidade, é traficante.
Por incrÃvel que pareça, é a partir da legislação que despenalizou com pena de prisão o tráfico de drogas, em 2006, que explode o número de presos por tráfico de drogas no Brasil. Explode porque aumenta a pena para o tráfico. Agora tem esse projeto absurdamente enlouquecido do deputado Osmar Terra (PMDB-RS). Se ele passar, a pena mÃnima para tráfico de drogas vai ser maior do que a pena para homicÃdio. É uma insensatez.
Os EUA estão mostrando que a guerra das drogas não vai nos levar a lugar nenhum. Os EUA estão começando a legalizar a maconha porque estão se dando conta de que estão enxugando gelo. E ficamos repetindo como um mantra que vamos resolver os nossos problemas através de uma guerra de drogas. Na verdade, é uma guerra à pobreza. É uma guerra contra a pobreza, porque quem é preso e morto nessa guerra são os pobres.
Como a sra. avalia a questão das facções dentro dos presÃdios?
A consolidação do poder das facções é um fenômeno do inÃcio dos anos 2000. Quando se trata pessoas com tanta brutalidade, crueldade e desumanidade, elas vão responder violentamente. É o que aconteceu no Maranhão e em outras partes do Brasil. Mas como ninguém se preocupa com o sistema penitenciário, essas questões nem chegam à grande mÃdia. O caso de Pedrinhas acabou chegando porque circulou aquela foto dos presos decapitados. Se a aquela foto não tivesse circulado, até hoje estarÃamos fingindo que não conhece a realidade do sistema penitenciário no Brasil.
Quando se ameaça levar o Brasil à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, as pessoas ficam um pouco perturbadas. Dizem que vai ficar mal para o Brasil, que é preciso tomar providencias. O que é uma grande hipocrisia. Em São Paulo há unidades femininas onde as mulheres ainda usam miolo de pão como absorvente higiênico. Em um paÃs que é a sexta economia do mundo e que tem uma mulher na presidência que foi presa e torturada, é muito triste perceber que o governo do PT ainda não olhou com a seriedade necessária o sistema penitenciário.
Não adianta dizer que vai construir unidades prisionais. Isso é muito fácil. O buraco é muito mais em baixo, a situação é muito mais grave do que isso. É preciso resolver uma questão que é sistêmica. Não adianta construir novas unidades enquanto não for resolvido o estrangulamento da saÃda e o problema da entrada. O sistema despeja essa quantidade enorme de pessoas que acabam mofando nas cadeias, que são presas ilegalmente. Enquanto não se resolver as duas pontas do sistema, não vai se resolver o problema.
Qual é a questão de fundo que faz o problema persistir? A sociedade brasileira tem desprezo pelo pobre?
Esse problema persiste há tanto tempo porque a sociedade brasileira é profundamente hierarquizada. Há cidadãos de primeira, segunda, terceira classe e os não cidadãos –aquelas pessoas sem voz e que são consideradas sem direito. Por que a polÃcia mata tanto no Brasil? Por que ninguém se revolta? Aqui no Rio a polÃcia já matou mais de mil pessoas por ano. Agora mata 500 por ano, e todo mundo fica feliz porque melhorou. Isso é uma vergonha! É um escândalo que a policia mate tanta gente!
Outro dia saiu notÃcia de a policia na Islândia tinha matado a primeira pessoa na história. Lá isso causou um constrangimento enorme. No Rio, a polÃcia mata 500 pessoas por ano e ninguém se constrange. A classe média parece aplaudir, porque seriam bandidos. São execuções extrajudiciais! Há estudos que mostram que as pessoas que morrem supostamente em confronto com a polÃcia são, na maior parte das vezes, mortas por tiros nas costas, na cabeça.
Fora o caso das balas perdidas. Na semana do Natal, uma menina de seis anos morreu vÃtima de uma bala dentro de casa numa favela do Rio. A comunidade foi para a rua, queimou ônibus, tão revoltada que ficou. Todo mundo diz que a polÃcia entrou atirando, como faz rotineiramente. Aquela velha máxima do “atire primeiro e pergunte depois” continua a viger nas áreas pobres.
É uma sociedade em quem tem poder está preocupado com o seu próprio umbigo. As pessoas que vão para as cadeias e que são vÃtimas da violência policial são pessoas pobres, que não têm nenhum poder. Elas nem sabem que casos como esses são amplamente cobertos por ação de indenização. Tanto os familiares dos presos mortos no Maranhão quanto das pessoas mortas pela polÃcia são casos que podem levar a uma ação de indenização contra o Estado. Isso não acontece porque as pessoas não têm noção dos seus direitos. Essas crianças que são mortas na favela quando a policia entra atirando… Imagina se elas morassem no asfalto em Ipanema ou no Leblon!
O que o governo deveria fazer agora no Maranhão? Uma intervenção?
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) mapeia com alguma competência os casos dos Estados em que existem problemas sistêmicos no funcionamento do sistema criminal. Mais importante do que uma intervenção em qualquer Estado, é mandar um grupo de juÃzes e de promotores. O CNJ já fez isso no passado, no perÃodo em que Gilmar Mendes era o presidente do STF. Foi feito com competência. Havia um mutirão permanente do CNJ. Mutirões eventuais os presos acabam chamando de “mentirões”, porque não resolvem. É preciso ter mutirões, forças-tarefas do CNJ permanentes.
É claro que em momentos trágicos, como esse do Maranhão, é preciso entrar, mostrar autoridade, recolher as armas e impedir que os presos se matem. Porque é responsabilidade do Estado: o homem entra vivo e tem que sair vivo. Afinal de contas, ele não foi condenado a ser morto dentro da cadeia; foi condenado à pena privativa de liberdade.
Fazer uma intervenção federal no Maranhão sem que se cuide de uma gangrena que é o funcionamento do sistema de justiça criminal, não adianta nada. Não vai chegar a lugar nenhum.
É responsabilidade do CNJ montar [os mutirões] como já houve no passado. Infelizmente foram abandonados tanto na ultima gestão como na de Joaquim Barbosa. Foi abandonada essa ação mais agressiva do CNJ nos Estados em que claramente há um problema sistêmico no funcionamento da justiça criminal.
O STF esta insensÃvel a isso?
Absolutamente, porque o CNJ hoje é uma pálida lembrança do que já foi no passado. É muito louvável que tenham denunciado o que está acontecendo no Maranhão. Mas não adianta só denunciar. É preciso se estruturar, como já aconteceu no passado, para tocar nessa ferida e fazer as engrenagens do sistema da justiça criminal funcionar.
O Brasil está excessivamente inspirado no modelo dos EUA na questão prisional?
Claramente estamos excessivamente inspirados no sistema norte-americano, acreditando que prisão resolve tudo. Uma quantidade enorme de pesos hoje poderia ser punida com outras penas diferentes de prisão, inclusive os pequenos traficantes. De que adianta a gente inundar as prisões de pequenos traficantes que automaticamente são substituÃdos por outros? A lei diz que é crime, e se precisa fazer alguma coisa. Mas certamente não é mandando para cadeia esses pequenos traficantes, meninos pobres de oportunidades, que se estará resolvendo o problema.
DeverÃamos estar investindo na capacitação dessa garotada para que ela não encontre no tráfico a única forma de ter acesso aos bens de consumo que a televisão vomita na cara deles diariamente.