A ação violenta liderada pela polÃcia civil do estado de São Paulo na região conhecida como Cracolândia, ocorrida na última quinta-feira, foi assunto que ocupou uma boa parte da mÃdia, gerou pronunciamentos divergentes de polÃticos e provocou reações diversas entre os brasileiros. Alguns se posicionaram a favor da medida, alegando que a ação policial é realmente o caminho para se ‘acabar’ com o uso e o tráfico de drogas; outros apontaram como bastante desastrosa, além de criminosa, uma ação que levou violência para pessoas já bastante expostas a ela e para uma região que, mais recentemente e de maneira inédita em sua história, vem apostando em alternativas de cuidado e integração social.
Baseado nisso, nós, representantes da sociedade civil, pesquisadores e acadêmicos das áreas da saúde, ciências sociais e jurÃdicas que nos dedicamos a estudar o fenômeno das drogas, nas suas mais diversas interfaces, achamos por bem nos posicionarmos com relação ao ocorrido, com o objetivo de destacar pontos importantes que nos fazem assumir como inaceitável em um contexto democrático este tipo de ação da polÃcia, que retroalimenta um quadro intolerável de violência, sabidamente amplificado e ao mesmo tempo tolerado em razão da “guerra à s drogasâ€, uma guerra feita contra pessoas, notadamente as que estão em condição de maior vulnerabilidade social.
Não é com pouca frequência que usuários de drogas, em especial de crack, são associados a imagens de zumbis ou de outros seres repugnantes, na tentativa de evitar, por meio da sensação de nojo ou de espanto, que jovens tenham contato com estas substâncias, pois se tiverem se tornarão um deles. Esta mensagem, além de não apresentar a efetividade desejada, acaba por gerar um efeito colateral ainda pior, que é o de provocar na população a sensação de que estas pessoas poluem, são sujas, perigosas e, portanto, não tem valor. O procedimento é claro: cria-se um léxico que as alocam em um imaginário monstruoso, que torna possÃvel jogá-las para fora da humanidade e, no mesmo passo, vulneráveis a toda espécie de arbitrariedade. A entrada da policia nesta região, usando balas de borracha e ferindo sem critérios, é a representação oficial desta desvalia, na qual se chancela a violação de direitos já bastante violados e se enaltece o preconceito e o estigma de que eles realmente não valem nada; suas vidas são menos vidas, seu sofrimento ignorado, e a relação que se estabelece com o uso do crack é utilizada como uma justificativa para o uso da violência e o abuso de poder contra esta população.
Pesquisas recentes quantitativas e qualitativas sobre uso de crack no paÃs, entre as quais se destaca a realizada pela Fundação Oswaldo Cruz, mostraram que, dentre as pessoas que frequentam os espaços chamados de cracolândias, há uma epidemia de desigualdade social, pobreza, falta de acesso a direitos básicos, incluindo moradia. O projeto excludente da vida nos grandes centros urbanos, centrado no consumo, insustentável a longo prazo para populações inteiras, se repõe, pelo avesso, quando o abuso de substâncias é a ele articulado, evidenciando o sintoma, não a causa, de mazelas sociais e tornando visÃvel o fracasso de escolhas polÃticas e culturais.
As vulnerabilidades relacionadas ao uso do crack são apenas o resultado das condições sociais e das contÃnuas e falidas polÃticas públicas repressivas e criminalizantes direcionadas aos seus usuários. Do mesmo modo, as polÃticas públicas são, também, sintomas, de certa maneira, de se olhar para o usuário, compreender os problemas, suas causas e possÃveis soluções, focando, principalmente, no sujeito e em suas condições sociais e culturais. Assim como na boa abordagem cientÃfica, na qual os erros são momentos valiosos para qualquer aprendizado, com as polÃticas públicas não deveria haver qualquer diferença. Programas como o de “Braços Abertosâ€, que ocorre hoje na Prefeitura de São Paulo, têm demonstrado, de modo incipiente porém em curso, uma boa receptividade entre os próprios usuários, ao agir sobre os sintomas de um problema ao invés de tentar extinguir as pessoas que dele sofrem.
Os maiores avaliadores do projeto devem ser os próprios usuários e, a julgar pelos iniciais depoimentos deles, não há como ignorar o grau de qualidade ofertado por este programa da prefeitura de São Paulo, tal como nenhuma ação repressiva jamais pôde incentivar, e tal como nenhuma instituição de tratamento fechada e isolada do convÃvio urbano teve a capacidade de promover. Observamos, entretanto, a necessidade de seguir um acompanhamento qualificado e um monitoramento para exercÃcios inclusivos na sociedade, que promovam saúde, bem-estar e incentivem projetos de vida. Apoiamos ações polÃticas de cunho social focadas no sujeito e na promoção do resgate da cidadania deste grupo já tão deserdado e vitimizado pelas iniquidades sociais em que são submetidos diariamente.
O uso arbitrário de medidas repressivas e violentas é uma grave violação dos direitos individuais e coletivos e deve ser tratado como tal. Se há décadas tentou-se ampliar a dose de um remédio que têm demonstrado efeitos adversos preocupantes – a repressão policial contra os consumidores das drogas – é chegada a hora de modificar a perspectiva, de superar as próprias dificuldades de discernimento, de tentar abrir os braços ao invés de cerrar os punhos. Só poderemos oferecer saÃdas a um problema quando deixarmos de fazer parte dele.
1.    Adriana Eiko Matsumoto, psicóloga, professora da PUCSP
2.    Aldo Zaiden, psicólogo, membro da Rede Pense Livre
3.    Alessandra Oberling, antropóloga, membro da Rede Pense Livre
4.    Ana Regina Noto, farmacêutica, professora da UNIFESP
5.    Ana Rosa Sousa, mestre pela UNIFESP
6.    André Bedendo, doutorando pela UNIFESP
7.    André Kiepper, Analista de Gestao em Sáude da Fundação Oswaldo Cruz
8.    Andrea Gallassi, terapeuta ocupacional, professora da UnB
9.    Beatriz Vargas, advogada, professora da UnB
10. Bruno Ramos Gomes, psicólogo, coordenador do Centro de Convivência É de Lei – Redução de Danos em SP
11. Cassia Baldini Soares, professora da Escola de Enfermagem da USP
12. Carla Zuquetto, mestre pela UNIFESP
13. Carolina Botéquio, mestranda pela UNIFESP
14. Clarissa M. Corradi-Webster, psicóloga, professora da USP
15. Celi Cavallari, psicóloga, conselheira da Rede Brasileira de Redução de Danos e Direitos Humanos (REDUC) e membro da Associação Brasileira Multidisciplinar de Estudos sobre Drogas (ABRAMD)
16. Cristiano Maronna, advogado, membro do IBCRIM
17. Danielle Vallim, socióloga, doutoranda visitante da Universidade de Columbia
18. Danilo P. Locatelli, psicólogo, mestre pela UNIFESP
19. Dartiu Xavier da Silveira, médico psiquiatra, professor da UNIFESP
20. Denis Petuco, cientista social, redutor de danos, doutorando pela UFJF
21. Denis Russo Burgierman, diretor de redação da revista Superinteressante
22. Diogo Busse, advogado
23. Emérita S. Opaleye, doutora pela UNIFESP
24. Eroy Aparecida da Silva, psicóloga, membro da ABRAMD
25. Flávia Fernando, psiquiatra, preceptora da residência em psiquiatria no Centro Psiquiátrico do Rio de Janeiro
26. Helena Maria Becker Albertani, educadora, membro da ABRAMD
27. Henrique Carneiro, historiador, professor da USP
28. Ilana Mountian, pesquisadora do Instituto de psicologia da USP
29. João Menezes, neurocientista, professor da UFRJ
30. Jorgina Sales Jorge, enfermeira, professora da UFAL
31. Julita Lemgruber, socióloga, coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC)
32. Luciana Boiteux, advogada, professora da UFRJ
33. Luis Fernando Tófoli, psiquiatra, professor da UNICAMP
34. Marcelo Sodelli, psicólogo, professor da PUC-SP, membro da ABRAMD.
35. Marcelo da Silveira Campos – Doutorando na USP
36. Maria Angélica de Castro Comis, psicóloga, Centro de Convivência É de lei, pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em Saúde e Uso de Substância (NEPSIS)
37. Maria de Lurdes S. Zemel, psicanalista, membro da ABRAMD
38. Maria Teresa Martins Ramos Lamberte, psiquiatra, Instituto da Criança do Hospital das Clinicas de São Paulo
39. Mariana Adade, psicóloga, pesquisadora convidada da Fiocruz RJ
40. Marisa Feffermann, pesquisadora do Grupo de Estudos em Direito e Sexualidade da USP.
41. Marta Jezierski Vaz, psiquiatra da UNIFESP
42. MaurÃcio Fiore, antropólogo e pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento.
43. Maurides de Melo Ribeiro, advogado, membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais
44. Mayra Machado, mestranda pela UNIFESP
45. Osvaldo Fernandez, antropólogo, professor UNEB
46. Paulo Cesar Duarte Paes, pesquisador da Escola de Conselhos/UFMS
47. Paulo Mattos, advogado, mestre em Saúde e Ambiente
48. Rafael Gil Medeiros, cientista social e redutor de danos
49. Renato Filev, neurocientista, doutorando pela UNIFESP
50. Renato Malcher Lopes, neurocientista, professor da UnB
51. Rubens Adorno, antoplólogo, membro do Grupo de Estudos sobre Drogas e Sociedade da Universidade de São Paulo (GEDS – USP).
52. Sandra Lucia Goulart; antropóloga, professora da Faculdade Cásper LÃbero
53. Silvia Brasiliano, psicóloga do Programa da Mulher Dependente QuÃmica da USP
54. Sidarta Ribeiro, neurocientista, professor da UFRN
55. Tatiana C. Amato, doutoranda pela UNIFESP
56. Taniele Rui, socióloga, pós-doutoranda bolsista da SSRC-Drugs, Security and Democracy
57. VÃviam Vargas de Barros, doutoranda pela UNIFESP
58. Vera da Ros, psicóloga, membro da REDUC
59. Yone Gonçalves de Moura, psicóloga, membro da ABRAMD