SEM O FIM DA “GUERRA ÀS DROGAS†NÃO HAVERà DESMILITARIZAÇÃO
 Maria Lucia Karam
JuÃza (aposentada), membro da Diretoriada Law Enforcement Against Prohibition (LEAP) e presidente da LEAP BRASIL
O debate em torno da violência praticada por agentes do Estado brasileiro frequentemente se concentra na ação de policiais, especialmente os policiais militares que, encarregados do policiamento ostensivo, são colocados na linha de frente da atuação do sistema penal. Logo surge a simplista identificação da qualidade de militares dada a esses policiais encarregados do policiamento ostensivo – os integrantes das polÃcias militares estaduais – como aparente causa dessa violência. Detendo-se naquela qualificação, muitos falam em desmilitarização das atividades policiais, simplesmente reivindicando o fim dessas polÃcias militares. Alguns vão além, propondo a unificação, reestruturação e maior autonomia organizacional para as polÃcias estaduais, na linha vinda com a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 51/2013, que começa a tramitar no Senado, visando “reestruturar o modelo de segurança pública a partir da desmilitarização do modelo policialâ€.
Desde logo, cabe louvar a referida PEC no que afasta a distorcida concepção militarizada da segurança pública que,  paradoxalmente  explicitada na Carta de 1988,  faz  das  polÃcias militares e corpos de bombeiros militares estaduais forças auxiliares e reserva do exército (§ 6º do artigo 144 da Constituição Federal brasileira). É a própria Constituição Federal que atribui à s polÃcias  militares  estaduais  as  tÃpicas  atividades  policiais  de  policiamento  ostensivo  e preservação da ordem pública e aos corpos de bombeiros militares a execução de atividades de defesa civil (§ 5º do mesmo artigo 144). Tais funções, eminentemente civis, pois voltadas para a defesa da sociedade e de seus cidadãos, são, por sua própria natureza, radicalmente diversas das funções reservadas à s forças armadas de defesa da soberania e integridade nacionais, voltadas para ameaças externas e guerras.
Eliminada tal distorção, a organização das polÃcias em entes diferenciados ou unificados e sua estruturação interna – carreira; tarefas especÃficas derivadas dos dois grandes eixos de policiamento ostensivo e investigação; disciplina; controles internos e externos; formação; e outros aspectos de seu funcionamento – são questões que estão a merecer amplo debate que, naturalmente, há de incorporar a voz dos próprios policiais.
A indispensável desvinculação das polÃcias e corpos de bombeiros militares do exército e a eventual reorganização das agências policiais longe estão, porém, de significar o esgotamento do debate sobre a desmilitarização das atividades policiais. A necessária e urgente desmilitarização requer muito mais do que isso. A militarização das atividades policiais não surge da mera (ainda que aberrante) vinculação das polÃcias militares ao exército, ou da mera existência de polÃcias denominadas militares – neste ponto, basta pensar nas semelhanças entre a Coordenadoria de Recursos Especiais (CORE), unidade especial da PolÃcia Civil do Estado do Rio de Janeiro e o Batalhão de Operações Policiais Especiais (BOPE) da PolÃcia Militar do mesmo estado, ou, em âmbito internacional, nos Special Weapons And Tactics Teams (SWATs) dos civis departamentos de polÃcia norte-americanos.
Mas muito mais do que isso, a militarização das atividades policiais não é apenas questão de polÃcias. Não são apenas as polÃcias que precisam ser desmilitarizadas. Muito antes disso, é preciso afastar a “militarização ideológica da segurança pública†1, amplamente tolerada e apoiada até mesmo por muitos dos que hoje falam em desmilitarização. A necessária desmilitarização pressupõe uma nova concepção das ideias de segurança e atuação policial que, afastando o dominante paradigma bélico, resgate a ideia do policial como agente da paz, cujas tarefas primordiais sejam a de proteger e prestar serviços aos cidadãos. A prevalência dessa nova concepção não depende apenas de transformações internas nas polÃcias e na formação dos policiais. Há de ser, antes de tudo, adotada pela própria sociedade e exigida dos governantes.
Muitos dos que hoje falam em desmilitarização e estigmatizam especialmente os policiais militares não têm se incomodado com atuações das próprias Forças Armadas que, em claro desvio das funções que a Constituição Federal lhes atribui, há tantos anos vêm sendo ilegitimamente utilizadas em atividades policiais. Na cidade do Rio de Janeiro, no final do já distante ano de 1994, foi concretamente ensaiada a proposta de transferir as tarefas de segurança pública para as Forças Armadas, só sendo então abandonada porque, como seria de esperar, não se produziram os resultados com que a fantasia da ideologia repressora sonhava.2 Naquela época, não se ouviram as vozes de muitos dos que hoje falam em desmilitarização e estigmatizam especialmente os policiais militares.
O cenário do tão incensado (pelo menos, até há pouco tempo) novo modelo de policiamento iniciado no Rio de Janeiro – as chamadas Unidades de PolÃcia Pacificadora (UPPs)– inclui tanques de guerra e militares com fuzis e metralhadoras, seja na ocupação inicial, seja de forma duradoura, como aconteceu nas favelas do Complexo do Alemão e da Vila Cruzeiro, em que o Exército permaneceu ali estacionado por quase dois anos, a partir de novembro de 2010. As vozes de muitos dos que hoje falam em desmilitarização e estigmatizam especialmente os policiais militares não se fazem ouvir, nem mesmo quando, no momento inicial das ocupações, chega-se a hastear a bandeira nacional, em claro sÃmbolo de “conquista†de território “inimigoâ€, a não deixar qualquer dúvida quanto ao paradigma bélico, quanto à “militarização ideológica da segurança públicaâ€.
O pretexto para a ocupação militarizada de favelas, como se fossem territórios “inimigos†conquistados ou a serem conquistados, é a “libertação†dessas comunidades pobres do jugo dos “traficantes†das selecionadas drogas tornadas ilÃcitas. Com efeito, é exatamente a proibição a determinadas drogas tornadas ilÃcitas o motor principal da militarização das atividades policiais, seja no Rio de Janeiro, no Brasil, ou em outras partes do mundo. No inÃcio dos anos 1970, a polÃtica de proibição à s selecionadas drogas tornadas ilÃcitas, globalmente iniciada no inÃcio do século XX, intensificou a repressão a seus produtores, comerciantes e consumidores, com a introdução da “guerra à s drogas†que, formalmente declarada pelo ex-presidente norte-americano Richard Nixon em 1971, logo se espalhou pelo mundo.
A “guerra à s drogas†não é propriamente uma guerra contra as drogas. Não se trata de uma guerra contra coisas. Como quaisquer outras guerras, é sim uma guerra contra pessoas – os produtores,  comerciantes  e  consumidores  das  arbitrariamente  selecionadas  drogas  tornadas ilÃcitas. Mas, não exatamente todos eles. Os alvos preferenciais da “guerra à s drogas” são os mais vulneráveis dentre esses produtores, comerciantes e consumidores das substâncias proibidas. Os “inimigos†nessa guerra são os pobres, os marginalizados, os negros, os desprovidos de poder, como os vendedores de drogas do varejo das favelas do Rio de Janeiro, demonizados como “traficantesâ€, ou aqueles que a eles se assemelham, pela cor da pele, pelas mesmas condições de pobreza e marginalização, pelo local de moradia que, conforme o paradigma bélico, não deve ser policiado como os demais locais de moradia, mas sim militarmente “conquistado†e ocupado.
O paradigma bélico, explicitamente retratado na expressão “guerra à s drogasâ€, lida com “inimigosâ€. Em uma guerra, quem deve “combater†o “inimigoâ€, deve eliminá-lo. Policiais – militares ou civis – são, assim, formal ou informalmente autorizados e mesmo estimulados, por governantes e por grande parte do conjunto da sociedade, a praticar a violência, a tortura, o extermÃnio. Colocados no “front†da repressão equiparada à guerra, policiais – militares ou civis – se expõem cada vez mais a práticas ilegais e violentas e a sistemáticas violações de direitos humanos. Como aponta o Inspetor Francisco Chao, porta-voz da Law Enforcement Against Prohibition (LEAP) e integrante da PolÃcia Civil do Estado do Rio de Janeiro, “essa guerra, mais do que a nossa força laborativa, sacrificada em investigações ou operações policiais, mais do que o risco de vida, mais do que as vidas dos que tombaram pelo caminho, está deturpando nossos princÃpios e valores mais elementaresâ€.3
A missão original das polÃcias de promover a paz e a harmonia assim se perde e sua imagem se deteriora, contaminada pela militarização explicitada na nociva e sanguinária polÃtica de “guerra à s drogasâ€. Naturalmente, os policiais – militares ou civis – não são nem os únicos nem  os  principais  responsáveis  pela violência  produzida pelo  sistema penal  na “guerra à s drogasâ€, mas são eles os preferencialmente alcançados por um estigma semelhante ao que recai sobre os selecionados para cumprir o aparentemente oposto papel do “criminosoâ€.
O estigma se reproduz nos debates sobre a desmilitarização no Brasil. Concentrando-se na ação de policiais, especialmente policiais militares, deixa-se intocada a ação corroborante e incentivadora do Ministério Público e do Poder Judiciário, de governantes e legisladores, da mÃdia, da sociedade como um todo. Concentrando-se em propostas de mera reestruturação das polÃcias, silenciando quanto à proibição e sua polÃtica de “guerra à s drogasâ€, deixa-se intocado o motor principal da militarização das atividades policiais.
Sem o fim do paradigma bélico que dita a atuação do sistema penal, qualquer proposta de desmilitarização das atividades policiais será inútil. Sem o fim da “guerra à s drogas†não haverá desmilitarização das atividades policiais. Uma efetiva desmilitarização das atividades policiais só será possÃvel através de uma necessária e urgente mobilização para romper com a proibição e sua polÃtica de “guerra à s drogas†e realizar a legalização e consequente regulação da produção, do comércio e do consumo de todas as drogas.
Notas:
1 A expressão é utilizada pelo Coronel PM (reformado) e Professor Jorge da Silva em artigo que, publicado em 1996, mantém sua atualidade: “Militarização da segurança pública e a reforma da polÃcia”. In BUSTAMANTE, R. et al (coord.). Ensaios jurÃdicos: o direito em revista. Rio de Janeiro: IBAJ, 1996, pp. 497/519.
2 Reproduzo aqui palavras que escrevi em meu artigo “A Esquerda Punitivaâ€. In Discursos Sediciosos – Crime, Direito e Sociedade nº 1, ano 1, 1º semestre 1996, Relume-Dumará, Rio de Janeiro, pp.79/92.
3 CHAO, F. “Legalização das Drogas: Porque eu digo simâ€. In http://www.leapbrasil.com.br/textos. Rio de Janeiro,
2011.