Natural do Iêmen (como o café), comprovadamente inofensiva, planta psicoativa chega à Europa, vencendo complexa logÃstica. Haverá maturidade para encará-la sem preconceitos?
Por Roberto Cattani
Descobri o qat nos anos 1970, quando fui para o Iêmen, que era então um dos paÃses mais isolados e desconhecidos do mundo, para entrar na Eritreia, em guerra com a Etiópia. Fiquei um mês lá, aguardando o momento certo para cruzar o Mar Vermelho e me juntar aos guerrilheiros da Frente Popular de Liberação da Eritréia (Fple). Deu tempo para conhecer os iemenitas, e os costumes do paÃs. O mais marcante é o consumo do qat. Muitos iemenitas tinham (e ainda hoje têm) a bochecha direita ou esquerda deformada, flácida, de tanto guardar nela o bolo de folhas, para chupá-lo devagar, ao longo do dia, até a noite.
Para esses iemenitas, para os somalis, para os moradores de Djibuti (a estratégica ex-colônia francesa que controla a entrada e saÃda no Mar Vermelho), para uma parte dos etÃopes e quenianos, o qat é exatamente o que a coca representa para os povos andinos.
É o vÃcio cotidiano para os povos doa região chamada de Chifre da Ãfrica, o que o café representa para os povos mais modernizados; é o estÃmulo absorvido, dia após dia, para enfrentar as dificuldades e os esforços da vida. Mas a dose de anfetamina natural contida na catha edulis é muito maior que em qualquer outra planta, incluindo a coca. Naquela época, fiquei me perguntando quando é que os grandes traficantes internacionais, sejam eles colombianos ou sicilianos (os cartéis mexicanos, hoje os mais poderosos do mundo, nem existiam então), iam descobrir o qat, e processá-lo quimicamente para extrair uma qataÃna, da mesma forma que a cocaÃna extraÃda da coca.
Agora parece que chegou a hora: o qat é o novo grande negócio, para os traficantes internacionais de entorpecentes, e até para os grupos terroristas que financiam suas atividades com as drogas, como al-Qaeda. Na Europa, hoje em dia, a diáspora somali e etÃope representa um grande mercado já disponÃvel, e cada vez mais europeus ficaram fisgados, depois de experimentar essa anfetamina natural, que aparentemente não apresenta nenhum tipo de contra-indicação e de sequela negativa, mesmo com o uso cotidiano e prolongado. Não é a qataÃna que eu estava imaginando (aparentemente, há problemas técnicos em extrair o princÃpio ativo do qat e transformá-lo numa substância de fácil assimilação). Mas ainda assim representa hoje, na Europa, um tráfico pouco inferior à cocaÃna e heroÃna, e maior que a maconha. Em 2013, foram sequestradas várias toneladas de folhas frescas nos aeroportos da Europa, para um valor comparável aos entorpecentes mais valorizados. E a tendência é aumentar a cada ano.
Os chineses tentaram ser os primeiros a reproduzir o princÃpio ativo do qat (qathinone), e chegaram a produzir uma substância quÃmica (mephedrone) bastante eficaz para dar um “barato†barato, mas a porcaria causou a morte de 26 pessoas durante as primeiras semanas de distribuição.
Os grandes traficantes de qat preferem limitar-se a distribuir as folhas frescas que, quando mastigadas, provocam um efeito considerado inigualável, pelos consumidores habituais (eu vomitei até as entranhas, quando experimentei pela primeira vez; mas depois, deu para apreciar).
O grande problema logÃstico do qat, ao contrário da coca, é que depois de 48 horas de colhido, ele perde todas suas propriedades estimulantes, que evaporam ao calor da Ãfrica Oriental. Por isso, o transporte desde as plantações do Quênia e da Etiópia, onde é produzida a maior parte do qat exportado atualmente, precisa demorar menos de um dia, para chegar até os mercados de consumidores ávidos das folhas verdes. Quanto mais fresco, tanto mais eficaz e valioso. Isto quer dizer que quem tiver o sistema mais funcional e desenvolvido para levar os feixes de folhas desde as plantações, nas alturas do altiplano centro-africano, até os centros de distribuição europeus, controla um mercado de vários milhões de dólares por dia.
Uma mulher etÃope muçulmana, mãe solteira de dez filhos, tornou-se, na última década, o maior chefão do tráfico de qat e, de quebra, a mulher mais rica e poderosa da Ãfrica, segundo uma pesquisa da revista alemã Die Welt. Suhura Ismail Khan fundou em 1998, e dirige ainda hoje, a empresa “571â€, que exporta 50 toneladas de qat por dia, com seus próprios aviões de carga de última geração. “Meus funcionários são seiscentos mas, entre cultivadores e revendedores, dou trabalho a vários milhares de pessoas, numa região onde não tem trabalhoâ€, gosta de se gabar Suhura, que garante pessoalmente nunca ter experimentado o qat, apesar de trabalhar 14 horas por dia. Num paÃs como a Etiópia, entre os mais pobres do mundo, a produção e comercialização de qat representa 17% do PIB, e a maior exportação nacional. Por contraste, no Iêmen, onde mais de 70% da população consome cotidianamente o qat desde a infância, a planta representa 11% do PIB, mas fica no consumo do mercado interno, e não é exportada – provavelmente por falta de organização e estruturas comerciais como a da “571â€.
Por contraste, a máquina montada pela etÃope Suhura é de uma eficácia impressionante. Todo dia, o ano todo, milhares de pequenos cultivadores entregam os feixes de folhas, valendo cada um entre 800 e 1.500 dólares, para centenas de transportadores e intermediários, cujas picapes francesas e japonesas fazem o difÃcil percurso das montanhas do Harar, na Etiópia, e do altiplano de Hargeysa, no Somaliland, onde o qat cresce melhor, até os portos e aeroportos de distribuição, de onde saem rumo à Grã-Bretanha e à Itália, os dois maiores mercados europeus. Para ir do Harar até Londres, percorrendo as precárias e sinuosas estradas de terra a 120 por hora até os jatos executivos, o qat demora menos de 16 horas para viajar 7 mil quilômetros, e chegar verde e fresquinho como exige o consumidor final.
Essa é a maior dificuldade que encontra al-Shebaab, a organização fundamentalista somali ligada à al-Qaeda, desde que há três anos decidiu entrar no comércio do qat para financiar suas atividades. Apesar de condenar o uso do qat por (discutÃveis) razões religiosas, os fundamentalistas não veem nenhum problema em vender a substância (da mesma forma que os talibãs com ópio e heroÃna) para os não-muçulmanos. Mas eles não têm o know-how e a fachada limpa para montar uma rede de transporte e distribuição oficial, como no caso da “571â€. Então, por um lado, operam com empresas de fachada em Nairóbi e MogadÃscio e, por outro lado, distribuem a droga, por meio de lanchas rápidas como aquelas dos piratas somalis, no litoral da Somália e do Iêmen e nos paÃses do entorno, como Djibuti, Eritréia e Puntland. Com a vantagem de ampliar, ao mesmo tempo, o controle social e psÃquico sobre parte da população da área.
O qat é uma tradição milenar no Iêmen. Ainda que hoje em dia os fundamentalistas o condenem, desde os primeiros séculos do Islã os mÃsticos das confrarias sufi adotaram a droga para ficar acordados a noite inteira para os ritos e a invocação. Nas dezenas de santuários da cidade sagrada de Harar, os ‘zikri’, as cerimônias mÃsticas coletivas muçulmanas (à s quais participam também frequentemente fiéis coptas), incentivam os participantes exaltados pelo efeito das folhas, mastigadas durante horas e horas, até o transe de união com Allah, e a exaustão fÃsica.
Contudo, está surgindo e se espalhando uma frente cÃvica modernizadora, de condenação da droga tradicional, no Iêmen e no Quênia. No paÃs da penÃnsula arábica (o mais pobre dos paÃses árabes), em 2012 a jornalista iemenita Hind al-Eryani (expatriada no LÃbano) lançou um “no-qat dayâ€, iniciativa imediatamente apoiada por Tawakkul Karman, ativista também iemenita, prêmio Nobel da Paz de 2012, e por milhares de cidadãos (os poucos não viciados, aparentemente). O objetivo da campanha é proibir imediatamente o consumo nos edifÃcios públicos, para chegar a uma proibição total até 2033. Não seria uma medida popular: em 1972, uma tentativa análoga levou à renúncia do poderoso primeiro ministro corone,l Mohsen al-Aini, que quis tirar o poder das grandes famÃlias (pertencentes a outro grupo tribal) que controlam a produção e a distribuição do qat no Iêmen.
Já no Quênia, um dos paÃses mais ricos e desenvolvidos do continente, o movimento anti-qat é liderado pelo advogado e ativista Abukar Awale, educado nos Estados Unidos (será só uma coincidência?). Awale obteve grande sucesso quando conseguiu convencer a ministra do Interior da Grã-Bretanha, a conservadora Theresa May, a banir e proibir oficialmente o qat, com o argumento dos riscos dos traficantes internacionais e organizações terroristas estarem por trás da importação. Isso, apesar do parecer favorável à substância de um grupo de pesquisadores — nomeados pela própria May – que não encontrou nenhum argumento legal e cientÃfico para a proibição de uma substância não-prejudicial para a saúde e a sociedade.
Mas a pesquisa, aparentemente objetiva, visto o resultado, realizada pelos experts britânicos, levanta justamente a questão crucial: até agora, todas as análises médicas e estudos cientÃficos mostram que o qat não é prejudicial à saúde, mesmo absorvido em grandes quantidades e por longos perÃodos, e é até benéfico, usado com moderação. Assim como poderia se dizer do café, do guaraná, e de outras substâncias moderadamente excitantes naturais. Aliás, é curioso notar que a região de Mokka, no interior do Iêmen, é considerada a origem do café, assim como do qat. Uma compensação divina por ser o único paÃs árabe onde nunca foi encontrado petróleo?
Então, por que condenar e banir uma substância e um costume que muitos povos consomem, como o resto do mundo faz com o café? Será mais um aspecto da tÃpica imposição ocidental, tipo “o que eu faço está certo, o que os demais fazem está erradoâ€? Ou ainda: “Meu cafezinho é apenas um hábito, esse costume deles de chupar folhas é um vÃcio, que põe em risco a sociedade inteiraâ€.
Entramos aqui na areia movediça do debate da legalização das drogas, “leves†ou “pesadas†que sejam (quem define o que, quais são os parâmetros?). O Uruguai atualizou o debate já antigo, mas novamente atual, entregando ao Estado o comércio da maconha. Alguns Estados dos EUA estão seguindo o mesmo caminho, com resultados promissores.
Voltando ao qat, que para muitos observadores cientÃficos, nem entorpecente poderia ser considerado, não seria muito mais lógico e eficaz controlar de forma oficial e legal o sistema de distribuição, impedindo, desde a produção, que seja controlado e manipulado por organizações ilegais e até terroristas? Banir substâncias, usos e costumes que fazem parte enraizada da cultura dos povos é coisa de fundamentalistas, evangélicos e outros fanáticos modernizadores, moralistas e repressores. As sociedades tolerantes, positivas e maduras englobam e garantem, sem discriminação e sem demonização.