Professor ensina, em casa, a plantar e cuidar da erva; regulamentação de produção da droga deve sair este mês
Participantes de curso dizem preferir ter a planta em seu quintal a se registrar em uma farmácia para consumo
LÃGIA MESQUITA ENVIADA ESPECIAL A MONTEVIDÉU
O professor, de moletom com a imagem do personagem de desenho animado Bart Simpson, pega o caderno e o apoia no colo. Tira do bolso umas bolinhas marrom esverdeadas e espalha sobre a folha de papel.
“Apertem a semente. Se ela não estourar nem descascar, está boa para ser plantada”, ensina, antes de entregar um potinho com terra e adubo orgânico para cada uma das quatro alunas.
Essa é a primeira das várias lições que Ãlvaro Calistro, 43, um dos fundadores da Rede Usuários de Drogas e Cultivadores de Cannabis do Uruguai, dá na aula de cultivo de maconha que acontece em sua casa, na tarde de um sábado, em Montevidéu.
“Se você tem a inquietude de consumir maconha, a forma mais segura é plantando. Assim também você evita se relacionar com o tráfico”, diz ele para a turma, acomodada na sala decorada com pôsteres de Bob Marley e da banda Led Zeppelin.
As credenciais do professor podem ser conferidas no quintal da residência. É lá que o artesão cultiva 20 plantas da erva junto com alguns amigos.
O jardim, por enquanto, é ilegal. Quando a lei que regulamenta a produção e o comércio da maconha no Uruguai for implementada, provavelmente ainda neste mês, Calistro poderá fazer de seu quintal um clube de cultivo.
Além de oferecer a uruguaios e residentes maiores de 18 anos a possibilidade de comprar, em farmácias, 40 gramas da erva por mês, a lei da maconha também permitirá o cultivo de até seis plantas por pessoa.
É por causa da nova legislação que, nos últimos dois meses, mais de 50 pessoas já tiveram as primeiras lições sobre autocultivo em cursos promovidos pela Federação Nacional de Cultivadores de Cannabis do Uruguai.
Segundo o presidente da entidade, Julio Rey, nem todos que buscam as aulas são consumidores da droga.
“Tem muita gente que já está pensando em oportunidade de trabalho, já que a maconha também poderá ser usada pela indústria têxtil e farmacêutica e há todo o mercado de abastecimento para o consumo”, diz.
As aulas podem ser frequentadas por qualquer pessoa, incluindo estrangeiros, e são gratuitas.
Algumas organizações, como a Rede Usuários, pedem uma “ajuda de custo” de 200 pesos uruguaios (aproximadamente R$ 20) pelos vasos, adubo etc.
NA FARMÃCIA, NÃO
A estudante de antropologia Andrea Fernandez, 27, era uma das alunas presentes no curso a que a Folha assistiu. Consumidora de maconha há dez anos, ela diz preferir cultivar sua própria erva a se submeter, no futuro, à compra regulamentada promovida pelo governo.
“As farmácias são uma despensa de drogas legalizadas, alimentam um sistema com o qual eu não concordo”, afirma. “Prefiro manter essa relação com a natureza, consumir uma coisa que seja a mais pura possÃvel.”
Andrea e as outras três alunas aprendem, ao longo de 1h30, a distinguir plantas macho e fêmea, a promover a iluminação artificial caso escolham o plantio dentro de casa, a fazer a colheita e a secar as flores, além de uma série de conceitos (floração, fotoperÃodo etc.)
Uma das jovens demonstra impaciência com a parte teórica. “Mas e as plantas grandes? Você não vai mostrar para nós?”, pergunta ao professor. “A peluquerÃa’ [salão de beleza] vai começar já, já. Podem separar as tesouras”, avisa Calistro.
Ele, então, traz uma planta de quase 2 metros que estava no quintal e dá a tesoura para que uma delas vá aparando as folhas e colhendo as flores. Depois, empresta uma lupa para que todas consigam ver os tricomas, as glândulas de resina que contêm os princÃpios ativos da droga.
Florencia, 32, que pede para não ter o sobrenome divulgado, já está plantando sua própria maconha em casa, mas ainda assim assiste a algumas aulas.
Ela acha positiva a nova lei da maconha, mas não sabe se irá acatar o pedido do governo e se registrar como cultivadora. “Não acho correto o Estado me dizer quantas plantas e quais espécies eu posso ter. Que liberdade é essa?”, questiona.
Pequenos plantadores da erva temem concorrência estrangeira
Os pequenos cultivadores de maconha do Uruguai estão felizes porque a nova lei descriminalizará a prática, mas temem que, com a divulgação das regras para a produção, sejam excluÃdos do novo mercado a ser explorado no paÃs.
“Estamos abrindo as portas para um negócio que não tem limite, já que somos o primeiro paÃs a regulamentar a produção e a venda de maconha”, diz à Folha Julio Rey, da Federação Nacional de Cultivadores de Cannabis do Uruguai.
Segundo Rey, com a provável chegada ao paÃs de multinacionais interessadas no uso medicinal ou têxtil da erva, o governo uruguaio precisa garantir o desenvolvimento econômico das pequenas comunidades no interior.
“Não queremos ficar ricos, mas queremos também poder sobreviver e garantir trabalho para os pequenos produtores”, afirma Rey.
A federação de cultivadores, que integra comissões da Junta Nacional de Drogas, órgão responsável por implementar a nova legislação, luta agora para que o governo não restrinja as espécies que poderão ser plantadas.
O texto do projeto de lei dizia que só seriam permitidas as variedades que não superassem o limite de 0,5% do princÃpio ativo THC.
A entidade também quer que a Junta pense em outras maneiras de se vender a erva aos consumidores, além das farmácias, como despensas instaladas pelas cidades.