Para juiz, “não se pode aceitar que o vendedor de cerveja ou cigarro ou cachaça ou vinho seja considerado um ‘digno’ e ‘produtivo’ comerciante, enquanto o vendedor de outras drogas, elegidas arbitrariamente para serem proibidas, sejam considerados perigosos e temíveis criminosos”.
COLETIVO DAR
Detido em janeiro de 2011 por portar três gramas de cocaína, Daniel caiu nas malhas do Judiciário como diversos outros usuários e comerciantes de substâncias tornadas ilícitas. Até aí sem novidade, afinal cerca de 150 mil das 600 mil almas aprisionadas hoje no Brasil estão cumprindo pena por crimes relacionados à guerra aos pobres, também conhecida como guerra às drogas (encontre um rico preso por drogas no Brasil e o DAR te dá um doce). A diferença deste caso em relação à maioria está no desfecho, já que Daniel foi absolvido: “A pretensão condenatória improcede. A absolvição sumária e antecipada do réu é de rigor. É que o porte de drogas para consumo pessoal, imputado ao réu na denúncia, não é crime, pois constitui conduta atípica em face da inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei n. 11.343/2006”, diz o despacho do juiz José Henrique Torres.
Como é que é? Um juiz de direito, de toga, peruquinha e martelo (ainda usam isso?) dizendo que a lei de drogas brasileira é inconstitucional? É isso mesmo. Pros que duvidam, o DAR não só disponibiliza a sentença completa, que pode ser acessada abaixo, como traz uma entrevista exclusiva com esse corajoso juiz, infelizmente peça rara em nosso judiciário careta, preconceituoso e conservador.
* Acesse no link a seguir a decisão completa que absolve Daniel e defende a inconstitucionalidade do artigo 28 da lei de drogas> sentença torres
*Conheça a LEAP e saiba mais sobre Agentes da Lei contra a Proibição das drogas
DAR – Está cada vez mais claro, em nível nacional e global, que a proibição das drogas é imoral, afinal não cumpre com suas promessas básicas de defender a saúde e ainda gera diversos outros problemas sociais. No entanto, sua sentença parece ir além: ela está nos dizendo que além de imoral a nossa lei de drogas é ilegal?
J.H.TORRES – A criminalização primária do porte de drogas para consumo pessoal não é apenas imoral e ilegal. É inconstitucional! E é exatamente por isso que é inadmissível em nosso sistema jurídico. A criminalização do porte de drogas para consumo pessoal viola princípios de direitos humanos, que são constitucionais, como o da lesividade, pro homine, igualdade, respeito às diferenças e liberdade da vida privada. Além disso, também viola os princípios constitucionais que limitam o poder punitivo do Estado, como a idoneidade, racionalidade e subsidiariedade. E não é só. Também há flagrante violação aos princípios democráticos da criminalização, que proíbem que o Estado criminalize para impor pauta de comportamento moral ou de forma meramente simbólica ou de modo promocional ou para punir condutas aceitas ou praticadas por grande parte da população. Na realidade, tal criminalização somente é mantida, atualmente, em face de uma ideologia de controle social, que é implantada sob a égide de uma proposta de dominação geopolítica, com fundamento econômico, que contraria a ética da dignidade humana. Trata-se de uma política que segue uma lógica bélica, baseada na ideia de segurança nacional travestida em defesa social, que elege inimigos para serem eliminados, para justificar a violação aos direitos fundamentais. E também é uma política racista, preconceituosa e discriminatória, voltada especialmente contra as classe subalternizadas.
DAR- Essa não é a primeira vez que você tem uma decisão como essas, certo? Há outros precedentes que você tenha conhecimento, há jurisprudência sendo criada nesse sentido? É possível que a decisão seja mantida em outras instâncias?
J.H.TORRES – – Há algum tempo, eu fui convocado para compor uma Câmara do Tribunal de Justiça de São Paulo e dei um voto exatamente nesse sentido. Mas, agora, atuando como juiz designado para auxiliar no JECRIM de Campinas, tive que enfrentar novamente essa questão. E há várias outras decisões sendo proferidas por inúmeros juízes, no mesmo sentido, em vários pontos do Brasil. Nessa minha decisão, fiz questão de mencionar algumas dessas sentenças. O juiz, quando vai proferir uma decisão, é obrigado a fazer o controle da constitucionalidade e, também, da convencionalidade das leis. Isso significa que, no momento de aplicar qualquer lei, o juiz deve verificar se essa lei viola ou não normas (regras e princípios) da Constituição Federal e dos Tratados e Convenções Internacionais de DDHH ratificados pelo Brasil. E, se a lei de criminalização do porte de drogas para consumo pessoal contraria tais normas, como eu acredito, juízas e juízes brasileiros deverão começar a enfrentar essa questão com maior frequência. E os tribunais também serão provocados a decidir a respeito. E eu espero que o entendimento no sentido da inconstitucionalidade acabe prevalecendo.
DAR- O artigo 28 da lei de drogas atual, que criminaliza a posse de drogas para consumo pessoal, está em vias de ter sua constitucionalidade julgada pelo STF. Qual você acredita que será o entendimento dos ministros nesse tema? Que implicações essa decisão pode ter?
J.H.TORRES – Como eu afirmei em minha decisão, as cortes constitucionais da Argentina e da Colômbia já decidiram que a criminalização do porte de drogas para consumo pessoal é inconstitucional. E essas duas cortes fundamentaram as suas decisões nos princípios constitucionais de direitos humanos. Eu espero, pois, que o STF siga o mesmo caminho e também reconheça a inconstitucionalidade de tal criminalização. Lembre-se que os princípios invocados por essas duas cortes também têm vigência e validade no Brasil. A Corte Colombiana, pela segunda vez, afirmou que há violação ao princípio da lesividade, princípio esse que também deve ser observado no Brasil. E a corte argentina afirmou que a criminalização em menção viola, além da lesividade, inúmeros outros princípios de Direitos Humanos que eu mencionei em minha decisão e que estão em plena vigência no Brasil, que ratificou os mesmos tratados e convenções internacionais de DDHH, incorporando-os, da mesma forma, ao seu sistema constitucional. E, se o STF declarar inconstitucional o artigo 28, ninguém poderá ser processado por portar drogas para consumo pessoal, todos os processos em trâmite serão arquivados e todos as condenações deverão ser revistas. Isso representará o resgate do respeito aos princípios constitucionais.
DAR- A inconstitucionalidade presente na lei de drogas diz respeito apenas ao artigo 28, ou poderia ser estendida a outros aspectos? Em relação a lesividade, por exemplo, poderíamos objetar que ela inexiste no “crime” de se vender algo a alguém quer comprar, não? Em relação a isonomia ou direito à intimidade sua decisão também parece apontar nesse sentido, de ir além da crítica somente a esse artigo”
J.H.TORRES – Realmente, a violação dos princípios constitucionais mencionados também ocorre com relação à criminalização do comércio de drogas. A política de guerra às drogas fracassou. Isso significa que está ocorrendo uma flagrante violação ao princípio da idoneidade, que somente justifica a criminalização quando idônea, útil, eficaz. Essa política inidônea somente funciona pra manter a vigilância e o controle social. Há um imenso aprisionamento de pessoas nos muros dos presídios por causa da criminalização das drogas. Mas é ainda maior a quantidade de pessoas aprisionadas a “céu aberto”, exatamente em razão dessa vigilância. Também há violação ao princípio da racionalidade, porque a criminalização do comércio de drogas está causando danos sociais imensos e muito maiores que o próprio comércio de drogas pode acarretar. Também há violação ao princípio da subsidiariedade, porque a regulamentação do comércio de drogas será muito mais eficaz para evitar eventuais abusos que a proibição criminalizadora. Aliás, é a criminalização das drogas que afasta as pessoas do sistema de saúde, quando dele necessitam. E existem inúmeras formas para se enfrentar a questão do abuso de drogas fora do sistema penal, todas elas muito menos lesivas para a sociedade e para os consumidores. Muitas drogas lícitas são potencialmente lesivas e nem por isso o seu comércio é criminalizado. Pelo princípio da igualdade, não se pode aceitar que o vendedor de cerveja ou cigarro ou cachaça ou vinho seja considerado um “digno” e “produtivo” comerciante, enquanto o vendedor de outras drogas, elegidas arbitrariamente para serem proibidas, sejam considerados perigosos e temíveis criminosos. Na realidade, não é o comércio de drogas que gera problemas sociais, mas, sim, a sua proibição, a sua criminalização.
DAR- Decisões como a sua ainda são minoritárias no judiciário paulista e brasileiro. No entanto, a sociedade avança cada vez mais na direção de transformações na forma como lidamos com as substâncias hoje ilícitas. Por quais caminhos você vê essa discussão passando até se efetivar em mudanças concretas? O fim da guerra está iminente em sua opinião?
J.H.TORRES – No início da marcha da maconha, a polícia e os juízes não a admitiam e a proibiam e a criminalizavam. Contudo, os jovens que insistiram na marcha, lutando pelo direito de manifestação, acabaram dando uma lição de direito, de justiça, de respeito aos direitos humanos para todos nós juízes e para toda a sociedade. Hoje, já não há quem questione esse direito. Acredito que, com relação à criminalização das drogas, ocorrerá a mesma coisa. É inexorável o fim dessa política irracional e inidônea de guerra às drogas. Até mesmo os EUA já estão admitindo que precisam mudar o enfrentamento dessa questão. E estão mudando. Portugal apresentou uma alternativa. O Uruguai também. Vários países estão buscando alternativas mais racionais ou menos irracionais. A OEA, em 2013, na Assembleia Geral realizada em Antígua, na Guatemala, começou a mudar o seu posicionamento a respeito da guerra às drogas. E reconheceu, expressamente, que os tratados internacionais sobre drogas devem ser aplicados e interpretados à luz dos princípios de Direitos Humanos, exatamente como o Uruguai está fazendo. É uma questão de tempo. Mas, o tempo urge, porque a sociedade está sendo obrigada a suportar danos terríveis decorrentes, não do comércio ou do consumo de drogas, mas, sim, da própria criminalização.