Me contem, me contem aonde eles se escondem?
atrás de leis que não favorecem vocês
então por que não resolvem de uma vez:
ponham as cartas na mesa e discutam essas leis”
Planet Hemp
A colaboração da vez na seção Cartas na Mesa é de Ravi Santana, jornalista e dependente químico. Em um relato sincero, Ravi fala abertamente sobre a árdua tentativa de interromper o uso de determinada substância, que quase contribuiu para sua morte há poucos meses, e reflete sobre a absurda e seletiva “guerra contra às drogas”. Esse é pra ler, curtir e compartilhar com geral, da vovó ligadona no rivotril ao priminho maconheiro (e versa-vice).
Quando decidi parar de usar drogas e porquê ainda não consegui
Ravi Santana
Eu sou um dependente químico. Muitos dos meus amigos e familiares não sabem, e aqueles que sabem geralmente tocam pouco no assunto e são discretos em não comentar com ninguém. Nunca gostei de falar sobre isso mesmo nos círculos mais íntimos e somente agora que sinto dificuldade em me limpar decidi contar essa minha fraqueza. E acho por bem fazer isso da forma mais aberta possível.
Comecei a usar essa droga há cerca de dois anos. Estava em um momento um pouco difícil pra mim e achei que ela poderia me ajudar a enfrentar isso. E ajudou. Pessoas próximas, que me ofereceram nas primeiras vezes, exaltavam suas qualidades: ela vai te deixar mais feliz; você vai esquecer seus problemas; vai ver o mundo de uma forma mais leve. Eles só não me contaram os riscos.
Demorei para perceber que era um dependente. Mesmo nas crises de abstinência, quando por algum motivo eu deixava de usar, eu acreditava que era mais forte que a droga e podia parar com ela na hora que eu quisesse. Grande engano. Somente quando decidi parar é que me dei conta. Primeiro com o alerta de alguns próximos a mim que já sabiam do efeito. Depois, em buscas rápidas pelo google. Por fim, na própria pele quando tentei me livrar de vez da substância.
Não se trata, porém, de nenhuma droga ilícita, mas de uma receitada por um médico. Sou dependente da chamada Venlafaxina, também conhecida por Efexor. Uso para tratar de uma depressão que sofro há quase vinte anos. Já usei outras drogas para o mesmo problema, mas sempre que disse “chega”, parei. Desta vez foi diferente. Os efeitos da abstinência da Venlafaxina são devastadores, e eu confesso que os temo. Dentre pessoas com que conversei e relatos que li, a duração dos sintomas vai de 2 a 4 semanas, fora que altera eternamente algumas funções cerebrais. Sim, eternamente!
Com a dificuldade em tratar a minha depressão, cheguei a tomar quase a dosagem máxima permitida da droga, que é 375 mg/dia, a pedido do médico. Hoje desci aos 65 mg/dia por conta própria, e tento diminuir ainda mais sem precisar recorrer ao profissional, que apenas a substitui por outra droga. São dores de cabeça, enjôos, tonturas, entre tantos sintomas até mais graves, mas de uma forma muito mais angustiante que dores normais. É difícil explicar, mas é como se não fosse o mundo que estivesse girando, como nos casos tradicionais de tontura, mas seu cérebro que estivesse girando dentro da cabeça. E isso apenas no primeiro dia sem a droga.
Recentemente, em viagem ao Peru, decidi fazer uso de uma medicação natural usada há séculos com resultados positivos para inúmeras enfermidades, inclusive para a depressão. Um dia antes de tomar o Ayahuasca, bebida tomada na região amazônica desde o tempo dos incas, procurei saber se havia alguma advertência ao uso das duas drogas ao mesmo tempo, e o resultado não foi menos do que chocante: a combinação é fatal. Assim como a maior parte dos anti-depressivos, a Venlafaxina não é segura se administrada junto ao chá, porém, ao contrário de outras drogas, o período mínimo recomendável de intervalo entre um e outro é de seis meses. Claro, desisti da experiência.
Há quem pode dizer que o problema é o Ayahuasca, então já rebato aqui. Enquanto a bebida é usada há pelo menos cinco séculos, a Venlafaxina faz parte dos chamados “anti-depressivos modernos”. Claro, pode-se dizer que há um maior rigor na criação da droga feita em laboratório do que de um chá feito por tribos indígenas. Vejamos então os efeitos colaterais: no chá, o vomito e a diarréia, no remédio, dentre os muitos estão, além da náusea, sudorese e tontura, ainda sonolência, insônia, perda de peso, ganho de peso, e tantas outras. Não bastasse ter sintomas tão contraditórios, ainda tem dentre os efeitos colaterais a depressão e a ansiedade. Você ficaria animado em saber que seu remédio para dor de cabeça causa dor de cabeça? Não, né? Eu também não fiquei quando soube que um anti-depressivo causa depressão.
Não vou cuspir no prato em que comi. Claro que a droga foi de fundamental importância para mim em grande parte do tempo em que tomei, mas os revezes também foram grandes, fora o alto custo financeiro. De qualquer forma, não quero ficar dependente da droga que for. Seja ela lícita ou não. Quero ter o direito de poder parar de tomar a hora que eu bem entender, e nunca me foi avisado que este era um direito do qual estava abrindo mão no momento em que comecei a tomar a Venlafaxina.
Há um discurso padrão sobre as drogas ilícitas e pouco se fala sobre aquelas que alimentam a tão sombria indústria farmaceutica. Sempre achei bastante questionável, aliás, que estas empresas possam mandar através de representantes, brindes para os médicos que receitam seus medicamentos. Na volta dessa mesma viagem, sentei no avião ao lado de dois destes representantes, que estavam em um congresso na Bolívia. Dentre os papos, eles reclamavam de um tradicional hospital de São Paulo que proibiu que seus médicos viajem a trabalho custeados por qualquer um que não o próprio hospital.
Acho questionável que, enquanto se preocupa em criminalizar o pobre que trabalha no tráfico, nada se faz pelo rico que fatura tanto com a venda de drogas lícitas como ilícitas. Me preocupa mais ainda que gente como eu acabe se tornando refém de um sistema que é visto com bons olhos pela população e pelo governo. Por que é certo que eu vire um dependente de uma droga que ainda é pouco conhecida e que se sabe que faz muito mal ao organismo, mas é errado o uso de outras substâncias bem mais estudadas, que tem resultados menos danosos, mas que pode ser administrado por qualquer um, não apenas pelos barões da indústria?
* Para colaborar, envie email com o assunto CARTAS NA MESA para: coletivodar@gmail.com
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