A multidão se amontoa em volta dos 48 barracos em busca das pedras de crack. É a feira de drogas que acontece 24 horas por dia na nova “favelinha” da cracolândia, que cresce no centro paulistano.
A aglomeração mostra que, quase na metade de seu mandato, a gestão Fernando Haddad (PT) não conseguiu reduzir o fluxo de dependentes quÃmicos na região.
Ao contrário. Deparou-se com o aumento da frequência de usuários e traficantes, mesmo após o lançamento de um programa que dá emprego e moradia a viciados, batizado de Braços Abertos.
Em junho, quando surgiram os primeiros dez barracos de lona na região, a prefeitura fez a remoção. De setembro para cá, porém, novos barracos apareceram. De três que estavam lá naquele mês, o número saltou para 48, segundo contagem da Folha ao longo desta semana.
A mesma ocupação desordenada de usuários já havia ocorrido em janeiro, porém em outra esquina do centro. Na ocasião, para dar fim à s 147 barracas, Haddad anunciou o inÃcio desse programa, que paga até R$ 15 por dia de trabalho na varrição de rua e oferece quartos de hotel aos interessados em se tratar.
A distribuição das pedras de crack acontece ao lado da sede do programa de tratamento de dependência do Estado, o Recomeço, e do ônibus da Guarda Civil Metropolitana dotado de câmeras que monitoram o movimento.
O veÃculo, da prefeitura, chegou neste ano à região.
A poucos metros dali fica uma base da PM, que também não interfere na aglomeração.
O fluxo de viciados ocupa toda esquina e, nos momentos de maior movimento, atrapalha o acesso dos poucos ciclistas que se aventuram na ciclovia instalada pela prefeitura bem em frente à estação de trens Júlio Prestes.
O vaivém de usuários com uniforme do Braços Abertos em busca de drogas é constante. “O programa deu um conforto. Mas a gente não quer só comida e cama, mas dignidade. O crack não vai acabar nunca”, disse um dependente que diz ter abandonado o programa municipal.
Ao lado da favela, moradores de um edifÃcio relatam medo de sair à s ruas. “Eles assaltam, roubam celulares aqui na porta”, disse a funcionária do prédio, que pede anonimato.
No segundo andar, é possÃvel ouvir a gritaria de usuários e sentir um forte odor de fezes vindo da “favelinha”.
O padre Júlio Lancelotti, da Pastoral do Povo de Rua, critica o novo modelo. “Criaram uma vitrine, mas ações imediatistas não resolvem. O fluxo está ali, como sempre.”
“Tenho uma cama e um cano com água para tomar banho. É um conforto, mas não vai me impedir de fumar pedra”, disse à Folha um viciado que diz ter entrado no programa Braços Abertos.
Ele, que não quis se identificar, afirmou trabalhar quase todos os dias em busca dos R$ 15 por dia e de uma vaga em um dos hotéis. Manco da perna esquerda por causa de um acidente, afirma estar na cracolândia há anos.
“Nada vai adiantar sem ajuda da famÃlia”, diz. Calou -se quando a Folha questionou onde estariam seus parentes. “Estou aqui desde que saà da cadeia”, afirmou.
Irritado, questionou à reportagem o que seria publicado. Na mesma hora, abriu sua mochila e mostrou um facão guardado ali.
Outro dependente diz ter sido um dos primeiros a entrar no programa da prefeitura, mas abandonou porque prefere trabalhar como catador. “Não acho que vai funcionar. Comida e um lugar para dormir não vão acabar com o fluxo. A gente precisa de ajuda de verdade, com apoio psicológico”, afirmou.
Comerciantes da região dizem duvidar das reais chances de recuperação de dependentes com os programas instalados na região.
“O Haddad até teve boa vontade, mas a gente vê que são poucos os que seguem no programa sem usar droga. E há muitos que estão roubando por aÔ, disse Robério Gonçalves, 31, dono de uma loja ao lado do fluxo
O prefeito Fernando Haddad (PT) disse, em entrevista recente, que a falta de policiamento contribui para o aumento do número de viciados na cracolândia. A Secretaria de Segurança Pública nega qualquer redução do efetivo.
Em nota, a prefeitura disse nesta quarta (19) que a persistência do “fluxo” (local de concentração de usuários para venda e consumo de drogas) “está diretamente ligada à continuada oferta de drogas na região, que é uma questão de segurança pública”.
A administração diz que tem insistido em tratativas com a PolÃcia Militar e o Governo do Estado para reverter a suposta redução do efetivo policial no local, que teria ocorrido no meio do ano.
A prefeitura informou que há 513 beneficiários cadastrados no programa Braços Abertos, sendo que 23 deles receberam atestado médico de aptidão ao mercado de trabalho e 122 estão em tratamento contra dependência.
Segundo a gestão paulistana, o consumo de crack entre os beneficiários do programa foi reduzido de 50% a 70%.
De uma média inicial de 10 a 15 pedras por dia, o consumo passou a cinco pedras diárias, consumidas à noite.
RECOMEÇO
Já a gestão Geraldo Alckmin (PSDB) informa que desde janeiro de 2013 foram realizadas 6.368 internações –5.495 voluntárias, 870 involuntárias e três compulsórias.
O governo estadual diz que só na primeira etapa do programa Recomeço, instalado ali neste ano, realizou 20 mil atendimentos sociais. O programa prevê encaminhamento para tratamento da dependência quÃmica.–
O comandante do policiamento da capital, Glauco Carvalho, disse que há 112 PMs atuando na cracolândia –no ano passado eram 116. “Nunca houve redução. É o maior efetivo policial por metro quadrado do Estado.”
Segundo Carvalho, além do efetivo exclusivamente destinado ao quadrilátero da cracolândia, há o policiamento diário feito por carros e motos.
Carvalho diz que, por se tratar de problema de saúde pública, os policiais têm limitações para atuar. “É um drama pessoal, e a PM não pode atuar de maneira ostensiva.” Ele diz que, de janeiro até a última terça-feira (18), 246 pessoas foram presas por tráfico, roubos e furtos na cracolândia.