Aguerra contra as drogas vai acabar. Na verdade, já está acabando. Quem afirma isso não são os ativistas pró-legalização, mas a própria Organização das Nações Unidas (ONU).
No World Drug Report 2014, a organização reconhece que o combate aos entorpecentes é inviável. Os Estados Unidos, que têm a polÃcia mais bem equipada do mundo, conseguiram reprimir apenas 10% do tráfico, segundo o último levantamento do DEA, a agência antidrogas norte-americana. Prender usuários tampouco é a solução. Na Europa, 56% dos presidiários continuam consumindo drogas ilÃcitas na prisão. Ou seja, nem nas barbas da lei a repressão é eficaz.
No Brasil, o consumo de cocaÃna mais que dobrou em dez anos. Como se não bastasse, essa é uma guerra cara demais para não dar certo. O economista de Harvard Jeffrey Miron calcula que só os Estados Unidos poupariam algo entre US$ 85 bilhões e US$ 90 bilhões por ano se acabassem agora com a proibição – no cálculo, ele incluiu os impostos que poderiam ser arrecadados com a venda legal de entorpecentes. Daria para tapar o rombo nas contas externas do Brasil, que alcançaram essa cifra no ano passado.
Essa nova percepção da mais alta cúpula do planeta sobre o fracasso do atual sistema antidrogas pode mudar tudo daqui para a frente. Em 2016, uma sessão especial da Assembleia Geral da ONU deve lançar novas diretrizes sobre como o mundo precisa encarar esse enrosco. Os analistas alegam que não vai ser fácil. “A resistência à s mudanças é da opinião pública. Ainda hoje, 45% dos norte-americanos querem que a maconha continue sendo ilegalâ€, diz Ethan Naldemann, diretor executivo da Drug Policy Alliance, que lidera o movimento de reforma das polÃticas de drogas. “Mesmo diante de tanta resistência, há uma grande mudança em curso.†No final dos anos 1960, os contrários à legalização eram 84%. O presidente Barack Obama já avisou que não vai interferir na disposição dos estados para flexibilizar as polÃticas antidrogas. Nesta e nas próximas páginas, traçamos cinco cenários do que pode acontecer nos próximos 30 anos a partir dessa mudança no modo de lidar com os entorpecentes.
Na fila da drogaria, um adolescente peÂde uma cartela de aspirina enquanto ao lado um senhor de cabelos brancos apresenta uma receita médica em que consta “1 cx dietilamida do ácido lisérgicoâ€, a ser usada uma vez por semana. Ninguém fica constrangido. Ãcidos, anfetaminas e baseados vão deixar as festas rave para ocupar farmácias e estabelecimentos especializados, onde os clientes trocarão informações sobre os tipos de maconha como se estivessem falando de cervejas artesanais. As drogas hoje ilegais serão usadas por avós e crianças com fins terapêuticos – porque, afinal, o que transforma uma droga em veneno é a dose –, e a legalização vai tirar a aura de fruto proibido dos entorpecentes, deixando o barato bem menos atraente, em especial para os jovens.
Mas o dono do bar não vai poder fazer propaganda de que tem o melhor baseaÂdo da cidade. Nem a farmácia poderá anunciar que seu LSD é infalÃvel contra a sÃndrome do stress pós-traumático. A regulamentação das drogas não deve seguir à risca a cartilha do álcool e do tabaco, considerada liberal demais pelos especialistas pró-legalização.
Estudo feito pela fundação Transform Drug Policy, do Reino Unido, traçou cinco cenários do que ocorreria por lá se as drogas fossem 100% legalizadas. No mais otimista, o consumo de cocaÃna e heroÃna cairia 50%, e, no mais pessimista, a demanda dobraria. Até com uma explosão na procura pelo pó branco (o maior medo das autoridades de saúde), o Reino Unido pouparia US$ 6,8 bilhões em prisões e custos processuais, dinheiro mais que suficiente para investir em prevenção e tratamento.
“É difÃcil imaginar o crack sendo vendido como o álcoolâ€, diz Ethan Nadelmann. “Drogas mais pesadas serão vendidas sob receita, e no mercado haverá produtos com doses pequenas – como ocorre hoje na BolÃvia, onde há chás e refrigerantes à base da folha de coca que não viciam mais do que Coca-Cola.†Os traficantes sumirão do mapa de vez? Infelizmente, não. Até agora, nenhum sistema que foi regulamentado conseguiu se ver livre do mercado negro. Mas ele vai ser 25% menor – e menos lucrativo – que hoje.
Após um ano de legalização do uso recreativo da maconha, o estado norte-americano do Colorado enfrenta uma situação insóliÂta. O governo lucrou tanto com os imÂpostos provenientes da venda da Cannabis que é possÃvel que tenha de devolver uma parte do dinheiro aos cidadãos. Isso porque a constituição local impõe um limite a quanto o estado pode faturar com o comércio da planta. Essa é a principal preocupação do primeiro estado norte-americano a regulamentar o uso recreativo da maconha. Desde janeiro de 2014, a violência diminuiu, o turismo aumentou, e – pasme! – o uso de maconha caiu entre os jovens. Como a Cannabis é de longe a droga mais consumida no mundo, torná-la legal é um passo fundamental para mudar de uma vez por todas a polÃtica de drogas no futuro.
A história do Colorado – que se repete no Oregon, em Washington (incluindo a capital do paÃs) e no Alasca – deve se expandir como rastilho de pólvora pelos outros 36 estados do paÃs. Hoje, em mais da metade dos Estados Unidos o acesso à maconha já está flexibilizado. Ethan Nadelmann diz que o exemplo desses estados vai fazer das mudanças liberais um caminho sem volta. “A regulamentação da Cannabis nos Estados Unidos é exemplo para o mundoâ€, diz ele. Não se admire se o paÃs que deflagrou a guerra contra as drogas nos anos 1960 se tornar o maior exemplo de como acabar com ela.
Nos próximos anos, as iniciativas europeias também devem virar modelos. Além da Holanda com seus coffee shops, Portugal vem mostrando como as drogas são um assunto de saúde pública, e não de polÃcia. Desde 2001, nenhum usuário vai preso. Em vez disso, ele é convidado a comparecer a um centro de reabilitação – viciados em heroÃna recebem doses ÂdiáÂrias de metadona. Em 13 anos, o ÂpaÃs aumentou o número de dependentes em tratamento (que não é compulsório) e reduziu os casos de HIV e o número de usuáÂrios jovens. Em 65 anos de guerra contra as drogas, nada disso foi alcançado.
O ano é 2025. Em uma festa, um jovem saca um pequeno e prático aparelho para checar a qualidade da sua segunda carreira de cocaÃna. Em poucos minutos, fica sabendo qual é o grau de pureza da droga e, por meio da saliva ou do suor, checa quanto da substância continua no seu organismo. Com as informações, prevê os efeitos da segunda carreira, a fim de evitar uma overdose.
Esses testes serão baratos, rápidos e móveis dentro de alguns anos, segundo o relatórioDrugs Futures 2025 (“O futuro das drogas em 2025â€), realizado por cerca de 50 cientistas a pedido do Departamento de Ciência do governo britânico. Eles vão permitir que o usuário regule o barato e faça um uso mais “responsável†das substâncias. O relatório indica também que adesivos, vaporizadores, injeções com efeito duradouro e estimuladores neurais vão se tornar comuns entre usuários (confira mais no quadro). Nem todas são tecnologias novas. Muitas delas já são usadas para administrar remédios comuns. A diferença é que os métodos de aplicação devem se popularizar para o uso de substâncias psicoativas. Além de fumar a maconha, o usuário poderá vaporizá-la ou aplicar adesivos de THC (o componente da erva que dá o barato), semelhantes aos que já existem para a nicotina.
O que poderá tornar a experiência de usar drogas realmente diferente é o surgimento dosbiochips, tecnologia que está em desenvolvimento para a produção de medicamentos. Com cerca de um centÃmetro quadrado, o microprocessador será implantado no corpo (no cérebro, por exemplo).
Ele compila informações sobre o organismo do usuário, mas também pode provocar as mesmas reações que as drogas convencionais no organismo – numa espécie de barato sem riscos. Os cientistas acreditam que os traficantes vão usar essa tecnologia para desenvolver novos entorpecentes de acordo com as caracterÃsticas biológicas de cada pessoa.
Ou seja, para o futuro, usuários terão acesso a versões mais potentes e mais controladas das substâncias, com efeitos acentuados ou reduzidos no organismo. “As novas drogas vão ter a mesma estrutura-base das que existem hoje. O que vai acontecer são pequenas alterações nos radicais das moléculas, o que deixará a pessoa mais excitada, relaxada ou com uma alucinação mais forteâ€, explica o médico Anthony Wong, chefe de assistência toxicológica do Hospital das ClÃnicas de São Paulo. Se surgir uma droga muito diferente, vai ser com a descoberta de uma planta desconhecida. Mas isso vai ficar por conta do acaso.
Depois de dois anos de intensa perseguição, o norte-americano Ross Ulbricht foi preso e considerado culpado por tráfico de narcóticos, lavagem de dinheiro e formação de quadrilha. Ele operava o site Silk Road, uma espécie de eBay de tudo o que é ilÃcito. Com a ajuda de um informante, um flagrante foi armado, e os maiores envolvidos no esquema foram pegos simultaneamente pela polÃcia de várias partes do mundo.
O tráfico ilegal vai continuar enquanto existirem usuários e vendedores, seja na boca de fumo, pelo Whatsapp, Facebook ou nas profundezas da web – até hoje não há notÃcia de alguma iniciativa que tenha conseguido banir as drogas do planeta. Além de combater grandes cartéis, que ainda continuarão poderosos, a polÃcia do futuro terá de lidar com traficantes menores, que operam de casa, usando canais comuns como o correio. A repressão pode até mudar de alvo, mas não se tornará obsoleta nem mesmo com a legalidade de alguns narcóticos: o ser humano domina a arte de sonegar impostos.
Outra alternativa da polÃcia no futuro será contar com uma maior participação do cidadão, através de ferramentas como a Saferweb, que acolhe denúncias on-line. Segundo Fabro Steibel, coordenador geral de projetos do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro, é possÃvel encontrar até os usuários que se utilizam do “turismo virtualâ€, artimanha que coloca a identidade do computador em outro lugar, fugindo da legislação local. Afinal, a tecnologia não escolhe lado.
Em janeiro, o editorial da revista cientÃfica Plos One fez um apelo à Organização das Nações Unidas para que fosse reconhecido o poder medicinal das drogas ilÃcitas. Hoje, a maconha, o LSD, o ecstasy, a heroÃna e a cocaÃÂna são classificados como superviciantes, perigosos e sem potencial terapêutico. “A prioridade deve ser dada à ciência, e não à guerra antidrogasâ€, diz o psiquiatra especializado em psicofarmacologia David Nutt, do Imperial College London, autor do artigo.
Para os cientistas que investigam o cérebro, quem sofre de transtornos mentais acaba se tornando vÃtima da proibição do uso de entorpecentes há mais de meio século. Isso porque as drogas psicoaÂtivas têm vantagens até hoje não encontradas em antidepressivos e ansiolÃticos, que passam por uma grave crise de credibilidade. “Na prática, esses medicamentos não conseguiram ser mais eficazes que placeboâ€, diz Sidarta Ribeiro, professor de neurociências do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
A indignação dos cientistas pode mudar o modo como as pessoas enxergam as drogas ilÃcitas e se transformar no argumento mais forte a favor da legalização – ou pelo menos criar a possibilidade de elas serem prescritas sob receita médica. David Nutt compara o atual cerco aos entorpecentes à atitude da Igreja de banir o telescópio, no século 15, impedindo os cientistas de proÂvar que a Terra não era o centro do universo.
Nos últimos anos, foram redescobertas centenas de pesquisas feitas nas décadas de 1950 e 1960, quando drogas como a maconha ainda não haviam sido banidas dos laboratórios. Desde então, pesquisadores nos Estados Unidos, na Europa e em Israel repetem os experimentos. O neurocientista norueguês Teri Krebs, autor de um estudo sobre os benefÃcios do LSD contra as recaÃÂdas no alcoolismo, diz que a proibição dos alucinógenos, por exemplo, não tem qualquer base cientÃfica. “Os pacientes [tratados com LSD] relatam ter conseguido romper com velhas formas de pensar e adquirido uma nova perspectiva do mundo, de si mesmos e de seus problemasâ€, conta Krebs. Essa nova consciência tem sido crucial contra o alcoolismo e o stress pós-traumático.
Já o ecstasy é apontado como um aliado do terapeuta nas consultas, e o chá de cogumelos, como antÃdoto contra a depressão. Outra substância, a quetamina, usada como anestésico para animais – e conhecida como “special K†–, é a nova esperança contra a depressão e o comportamento suicida. Isso sem falar da maconha, cujas propriedades têm um potencial terapêutico inesgotável contra dores crônicas, náuseas, epilepsia e câncer. A ciência moderna pode estar prestes a oferecer um jeito inédito de lidar com as drogas, muito mais pacÃfico e útil.
MACONHA > Tem efeitos benéficos comprovados no tratamento da dor crônica e do glaucoma, no controle dos enjoos da quimioterapia e no aumento do apetite nos portadores de HIV. Seus componentes vêm sendo testados contra epilepsia, câncer, Parkinson, Alzheimer, fobias e dependência de álcool e de tabaco.
CHà DE COGUMELOS > Estudos feitos pelo Imperial College London em 2012 mostram que os alucinógenos alteram a consciência de forma profunda e podem ajudar na psicoterapia e no tratamento da depressão.
COCAÃNA > É um poderoso analgésico. A folha de coca, muito usada na BolÃvia e no Peru, contém alcaloides que reduzem a irritação do intestino.
ECSTASY > Pesquisadores da Universidade de Birmingham, na Inglaterra, descobriram propriedades anticancerÃgenas na droga, também testada no tratamento do stress pós-traumático.
LSD > Uma única dose (ou poucas) reduz as recaÃdas no alcoolismo, segundo um estudo norueguês. Outro estudo, do Johns Hopkins, mostra que as drogas psicodélicas são eficazes também contra o tabagismo.
QUETAMINA > Pesquisa publicada na revista Science em 2012 aponta que o anestésico para cavalos aumenta as sinapses cerebrais e tem um efeito rápido em depressivos crônicos – a descoberta mais importante da área nos últimos 50 anos.
* Colaboraram Marcel Hartmann e Nathalia Tessler
+ MARCHA DA MACONHA SÃO PAULO 2015 — 23/05 +
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