Desde que começou um tratamento à base de canabidiol (CBD), um dos derivados da maconha, a vida de Anny Fischer, hoje com sete anos, mudou. Portadora da sÃndrome CDKL5, uma doença genética rara que causa epilepsia grave, Anny chegou a ter 80 convulsões por semana; hoje, após quase dois anos usando o CBD, tem crises esporádicas.
O canabidiol não é produzido nem vendido no Brasil, e sua importação só foi legalizada em janeiro de 2015, quando a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) o excluiu da lista de substâncias proibidas e o reclassificou como substância de uso controlado. Até então, só era possÃvel importar o CBD na clandestinidade ou por meio de autorização judicial. E foi isso que Katiele Fischer, mãe de Anny, acabou fazendo: “traficou” o canabidiol até abril de 2014, quando se tornou a primeira brasileira a ganhar na Justiça o direito de importar a substância.
Um frasco de CBD pode custar de US$ 200 a US$ 500 (o equivalente a R$ 620 e R$ 1.550, hoje). Como se não bastasse, os pacientes precisam retirar o produto diretamente nos aeroportos – a maior parte acaba aterrissando no Aeroporto de Viracopos, em Campinas (SP). Outra opção é contratar um despachante aduaneiro para fazer a liberação do CBD, o que também não sai barato.
Diante do custo elevado e da burocracia da importação, Katiele defende a regulamentação da maconha no Brasil. “A legalização seria ideal, pois terÃamos produção nacional, o que reduziria os custosâ€, afirma. Ela diz que a questão “mais urgente†é o uso medicinal, mas cita a superlotação das cadeias brasileiras como um fato a ser considerado na revisão da polÃtica de drogas no PaÃs.
“A bandeira principal é a maconha medicinal, para o tratamento de várias doenças. Mas a superlotação nas cadeias do Brasil é uma coisa real. E se você observar as estatÃsticas, você vai ver que muitas das pessoas que estão ali não são traficantes, são vÃtimas da situação do tráfico. Então eu acho que, se a gente regulamentar a maconha, nós vamos ter um quadro diferente no Brasil em diversas situaçõesâ€, afirma.
Desde que o canabidiol foi reclassificado, a Anvisa já recebeu 578 pedidos de importação, dos quais 500 foram concedidos – é necessário ter receita médica e enviar uma série de documentos. Além da epilepsia refratária, podem ser tratadas com CBD doenças como esclerose múltipla, glaucoma e anorexia, além de dores crônicas. Para Katiele, enquanto a regulamentação não vem, o foco é lutar pela simplificação da importação do canabidiol e a favor da liberdade. “O nosso foco é garantir o direito de escolha. A pessoa tem que ter o direito de escolher como e com o que ela quer se tratar. Epilepsia não espera, dor crônica não espera.â€
Leia, abaixo, trechos da entrevista concedida por Katiele Fischer:
A Anny começou a usar o CBD em 2013. O que mudou na vida dela?
A Anny hoje é outra criança. Apesar das limitações impostas pela sÃndrome CDKL5, ela hoje está muito bem. No inÃcio, quando ela começou a apresentar melhora, nós não acreditamos que pudesse ser efeito do CBD. Aà na segunda semana o número de convulsões caiu de novo, reduziu mais. No geral, as crises foram diminuindo ao longo das semanas. Quando ela estava usando havia nove semanas, ela conseguiu passar uma semana inteira sem crise. Então a gente estava assim: deslumbrado.
Os outros medicamentos não davam resultado?
Não davam resultado. Algumas crianças reagem muito bem a esses medicamentos tradicionais, mas não foi o caso da Anny. Então a gente teve que buscar uma coisa mais alternativa, e a única que nós conseguimos encontrar foi o CBD. Com a epilepsia controlada, a Anny voltou a ficar acordada, voltou a fazer barulho. Hoje ela tem o controle cervical, ela fica sentada, coisa que não acontecia. Ela sorri. Tudo bem que para ela sorrir é uma situação esporádica, mas ela sorri de vez em quando, faz birra. São pequenas coisas que fazem uma diferença enorme na qualidade de vida. Ela continua sendo uma criança extremamente comprometida. Mas se você for comparar ela antes com hoje, é uma diferença espantosa.
Após quase dois anos, como está a frequência de convulsões?
Em semanas ruins as crises chegavam a 80. Hoje ela tem crises esporádicas. E isso pra gente é uma vitória incrÃvel. Infelizmente a sÃndrome é muito cruel, degenerativa. Eu sou mãe coruja, então quem olha a Anny diz: é uma criança comprometida. Sim, é uma criança comprometida, mas ela está ótima. Não só ela, mas a famÃlia inteira.
O que mudou para a famÃlia?
Mudou o clima da casa, mudou a atenção que a gente tinha, de que a qualquer momento ela poderia ter uma crise. É uma coisa traumática. Por mais que você veja uma convulsão a cada duas horas ou a cada quatro anos, não é uma coisa com a qual você se acostuma. E o risco dessas crises são bem reais porque, no caso da Anny, as crises eram generalizadas, englobavam o cérebro inteiro, a parte respiratória, a parte cardÃaca, tudo. A gente nunca deixou de sair com a Anny, mas hoje a gente sai com mais tranquilidade, sem aquela tensão. Outra coisa que mudou aqui foi o vocabulário da casa. O Fischer quando ligava pela manhã falava: ‘quantas crises ela teve?’. Hoje, não. Ele pergunta: ‘a Anny sorriu?’. São momentos totalmente diferentes.
Você sente preconceito quando diz que usa maconha no tratamento?
Sim, o preconceito ainda existe. Mas uma das nossas grandes bandeiras é combater o preconceito da única maneira que ele pode ser combatido: com informação. A partir do momento em que a pessoa baixa a guarda para ouvir sobre o assunto, não tem como ela ficar contra. Mas, infelizmente, na nossa cultura brasileira está incrustado que maconha é algo do mal. Eu cresci assim, ouvindo que maconha era uma coisa ruim, que eu não deveria chegar perto. Mas a partir do momento em que você começa a se informar e a ler sobre maconha, não tem como você não abraçar uma causa dessa.