Amarildo Dias de Souza, morador da favela da Rocinha, zona sul do Rio de Janeiro, desapareceu na noite do dia 14 de julho de 2013. O caso, que completará dois anos na próxima terça-feira (14), ocorreu durante a onda de protestos que abalou a gestão do então governador Sérgio Cabral (PMDB). Na ocasião, um questionamento se juntou às diversas bandeiras das manifestações: onde está o Amarildo?
O sumiço do morador da Rocinha é apenas uma das 23 ocorrências referentes a desaparecimento de pessoas na comunidade, segundo dados do ISP (Instituto de Segurança Pública) que vão de janeiro de 2013 a dezembro de 2014. Isso significa dizer que, na maior favela do Rio, que conta com uma UPP (Unidade de PolÃcia Pacificadora) desde 2011, houve praticamente um caso de desaparecimento por mês em dois anos. Dos 23 casos, 12 ocorreram no ano passado –um a mais em comparação com o ano anterior.
Na avaliação do delegado Orlando Zaccone, responsável pela primeira fase do inquérito do caso Amarildo, é importante ressaltar que os registros de desaparecimento nem sempre estão relacionados com atos de violência. Ele citou, por exemplo, a própria mulher de Amarildo, Elizabete Gomes da Silva, que foi localizada em Cabo Frio (RJ) após sumir por dez dias, em julho do ano passado. De acordo com o advogado da famÃlia, João Tancredo, o sumiço teria ocorrido voluntariamente.
“Isso é uma coisa que acontece muito na polÃcia. Certa vez, eu fiz um registro de uma senhora que havia desaparecido na Tijuca [zona norte da cidade]. Descobrimos que a senhora tinha ganhado no bingo, entrado em um táxi e simplesmente sumido. No começo, pensamos que se poderia se tratar de um crime patrimonial. Mas até o filho dela ficou tão constrangido que nem quis nos contar os motivos da mãe”, relatou o delegado.
No Estado do Rio, em geral, houve mais de 12 mil casos de pessoas desaparecidas no perÃodo entre janeiro de 2013 e dezembro de 2014, o que corresponde a uma média de 500 registros por mês. Segundo Zaccone, os números são “assustadores por si só”. Ele afirma que há, contudo, uma falha ainda mais grave por parte dos órgãos de segurança pública: a carência de um estudo aprofundado sobre esses registros.
“Temos que trabalhar com recortes, até porque, pela minha experiência como policial, eu diria que a maioria dos desaparecidos acaba aparecendo em algum momento. A questão é que eles aparecem, mas a famÃlia não sinaliza. Esse assunto merece um estudo mais aprofundado, uma espécie de auditoria para reunir informações sobre as pessoas que realmente continuam desaparecidas. Sem isso, a gente não tem nem de onde partir”, declarou.
O antropólogo e professor da UFF (Universidade Federal Fluminense) Lenin Pires tem opinião semelhante à de Zaccone. Para o especialista, “falta uma polÃtica pública que leve à s últimas consequências a investigação de desaparecidos em todas as camadas sociais”. “O que existe, hoje, é uma apuração seletiva. Nem todos os casos ganham destaque na mÃdia, assim como ocorreu com o Amarildo, que só ganhou projeção por causa das manifestações”, afirmou ele.
Pires defende que sejam “institucionalizadas práticas para elucidadão de desaparecimentos”, independentemente da “relevância de cada caso”. Como exemplo positivo, ele citou a criação da DDPA (Delegacia de Descoberta de Paradeiras), inaugurada em setembro do ano passado e chefiada pela delegada Elen Souto, que comandou a investigação do caso Amarildo junto com o titular da Divisão de HomicÃdios, Rivaldo Barbosa.
De acordo com a assessoria de imprensa da PolÃcia Civil, em seus quatro primeiros meses, a nova delegacia especializada conseguiu solucionar 375 de 767 ocorrências, com taxa de elucidação de 48%. Não há dados disponÃveis para o ano de 2015. De janeiro a maio deste ano, foram registrados 2.694 casos de desaparecimento –média de quase 540 por mês.
A titular da DDPA afirmou ao UOL que, na prática, a cada dez registros de desaparecimento, oito são solucionados. Segundo ela, na maioria das vezes, a famÃlia da pessoa que havia sumido não retorna à delegacia para informar sobre o desfecho do caso. “Sim, existe esse ‘gap’ [lacuna ou brecha, em português]. Para a polÃcia, esses números são sempre fictÃcios”, declarou ela. “A maioria das notificações diz respeito a casos de conflitos familiares ou pessoas que têm problemas mentais ou com drogas.”
Questionada sobre a incidência de casos na Rocinha, Elen negou que exista, na comunidade, um problema especÃfico em relação ao número de desaparecimentos. Para a delegada, esse tipo de recorte chama atenção em razão da repercussão do caso Amarildo. “Na verdade, é um fenômeno abrangente. Não tem um caráter localizado”, declarou ela.
A jornalista e publicitária Michele Silva, 26, que nasceu e foi criada na comunidade, diz que sempre houve muitos comentários em relação a desaparecidos na Rocinha. Em seu jornal comunitário, o “Fala Roça”, a jovem afirmou que constantemente publica cartazes e notÃcias dessa natureza. “A gente já ajudou em muitas campanhas. Foram crianças, jovens e até idosos que desapareceram. Muitos realmente aparecem depois. Mas é algo muito comum”, disse.
Segundo Michele, a relação da comunidade com os policiais da UPP “vem se deteriorando” nos últimos anos, principalmente em virtude da grande repercussão do caso Amarildo. “Os tiroteios acontecem constantemente. A cada troca de tiros, a desconfiança da comunidade aumenta. A sensação é que a presença da polÃcia traz mais insegurança do que segurança. Existe uma instabilidade muito grande. A qualquer momento, algo pode acontecer”, declarou.