“Me contem, me contem aonde eles se escondem?
atrás de leis que não favorecem vocês
então por que não resolvem de uma vez:
ponham as cartas na mesa e discutam essas leis”
Planet Hemp
A seção Cartas na mesa é composta por opiniões de leitores e membros do DAR acerca das drogas, de seus efeitos político-sociais e de sua proibição, e também de suas experiências pessoais e relatos sobre a forma com que se relacionam com elas. Vale tudo, em qualquer formato e tamanho, desde que você não esteja aqui para reforçar o proibicionismo! Caso queira ter seu desabafo desentorpecido publicado, envie seu texto para coletivodar@gmail.com e ponha as cartas na mesa para falar sobre drogas com o enfoque que quiser.
Nesta edição, nosso colaborador premium Rafael Zanatto comenta e destrincha o “mito fundador” da relação entre maconha e violência, a conexão entra os termos “haxixe” e “assassino”. De quebra o artigo conta com duas ilustras inéditas de C´amô Crew, a quem também agradecemos.
Maconha e Assassinatos: O mito fundador
Rafael Morato Zanatto1
Sentado em posição reflexiva e queimando uma erva, sentiria eu vontade de colher a existência alheia? Durante muito tempo o consumo de maconha foi associado à prática de crimes, dos mais violentos aos corriqueiros. Integro “esse pessoal que quer legalizar a maconha”, nas palavras do nosso querido Ronaldo Laranjeira, laranjinha para os mais íntimos, aquele mesmo que compactuou com a fala de José Serra no Palácio dos Bandeirantes: legalizar a maconha e estupro de criancinhas seria a mesma coisa… Mas perderemos nosso tempo respondendo afirmações sórdidas ou faremos valer a apropriação de temas de pertinência social, depositados bem no fundo da lata de lixo da história? Não trataremos aqui de roubos, estupros, assassinatos e outras práticas condizentes com o respeito à existência democrática, longe disso, cultivamos nesta rápida nota o interesse em revelar o mito fundador, aquele que os médicos brasileiros se apegavam com veemência, antes de direcionar sua narrativa contra o hábito de fumar maconha e derivados, cultura de negros, incultos, membros ignorantes das classes mais à margem da sociedade.
Eis aqui, como contribuição fundamental, apontar que o mito fundador da associação da maconha com o crime é, sem sombra de dúvidas, a história dos Haschichins, assassinos profissionais a serviço do Islã durante as cruzadas. A história se faz presente já no trabalho de Rodrigues Dória, Os Fumadores de Maconha: Efeitos e Males do Vício (1915). Este trabalho, talvez nosso primeiro grande artigo sobre a erva maldita, foi seguido por muitos outros trabalhos, procurando desvendar os mistérios da erva maravilhosa. Seria este o primeiro estudo nacional amparado no modelo científico, se não fosse o relato do paulista Jesuíno Maciel, que no mesmo ano relatou suas observações experimentais em dois indivíduos, um dos quais era seu empregado e, o outro, um estudante de medicina. Embora não houvesse acrescentado nada de novo ao que já se conhecia no país sobre a maconha. Mas vamos lá, de volta ao mito fundador.
No trabalho de Dória, professor de medicina pública da Faculdade de Direito da Bahia, a citação aos cavaleiros assassinos fumadores de haxixe aparece mediante a presença da lenda no dicionário da língua inglesa de Webster: “Conta-se na idade média que, entre 1090 e 1160, os príncipes do Líbano, especialmente Hassam-bem-Sabak Homairi, apelidado o Velho da Montanha, fazia os seus soldados usarem a planta, para fanatiza-los, e, com furor, assassinarem os inimigos, e a lenda chamou-o príncipe dos haschischinos2“.
O mito é repetido algum tempo depois no trabalho do Dr. Oscar Barbosa, O Vício da Diamba, que, segundo ele, já haviam se referido “à lenda do Príncipe do Líbano, o Velho da Montanha, que na Idade Média conseguia tudo quanto desejasse, até hecatombe de seus adversários, mediante a ação do haschisch. Sem a menor e qualquer suspeita, valia-se por vezes, de indivíduos da mais alta classe social como instrumento de vingança. Este mesmo príncipe fazia os seus soldados tomarem o haschich para fanatizá-los e dar-lhes, assim, fúria e intrepidez, quando fossem assassinar os inimigos. A lenda chamou-lhe, por isto, príncipe dos haschichinos, daí a origem árabe da palavra “assassino”. Dizem que, de então, aquele nome foi dado aos israelitas que, meio, embriagados ou exaltados pela ação do haschich, matavam alguém”3.
Outra vez, distando 15 anos do primeiro trabalho brasileiro, o Engenheiro Agrônomo A. de P. Leonardo Pereira, O cânhamo ou a diamba e seu poder intoxicante (1932), ampara-se outra vez a presença do mito se repete, com algumas alterações em relação ao original: “No século II, na época das Cruzadas, da Pérsia e da Síria, partiram bandos malfeitores, que comiam o Haschisch, antes de praticarem seus atos sanguinolentos. A palavra assassin, do francese, segundo o Littré4, é oriunda do termo sânscrito haschischin. P.A. Pinto em suas “Notas de advocacia gramatical”, diz: “[…] provém o vocábulo do persa ou do árabe haschisch, que é o nome de uma urticária fortemente sonífera, chamada em linguagem vulgar cânhamo indiano ou haxixe, do gênero cannabis, espécie Índica. Liga-se a história da palavra à lenda do velho da montanha, monge do tempo das cruzadas. Pretendendo esse velho fundar nova religião, mandava matar todos os que lhe eram adversos e, para lucrar absoluta obediência dos matadores, embriagava-os com chá de haschisch”5.
Comparando com a citação original do Littré, o agrônomo oculta o fato de que o haxixe fazia parte de uma estratégia onde o Velho da Montanha oferecia aos soldados o paraíso na terra, dando-lhes mais coragem para morrer ao cometer os atentados ao satisfazer-lhes todos os desejos, e não a partir dos efeitos mágicos do haxixe, como quer fazer seu leitor acreditar. Algo que nos parece aqui é usar o desconhecido, a fé dos infiéis que massacravam cristãos durante a guerra santa para formar no imaginário da sociedade o vínculo milenar da maconha com a prática de assassinatos. Não era apenas hábito de negros e incultos, mas de infiéis assassinos, inimigos históricos da “verdadeira fé”, o cristianismo.
Temos, por último, a recuperação do mito no trabalho premiado do professor Jayme Regalo Pereira, Contribuição para o estudo das plantas alucinatórias, particularmente da maconha (1944). Apoiando-se também no dicionário Webster, Jayme Regalo Pereira afirma o vínculo etimológico do haxixe com o assassinato, a partir do mito do Velho da Montanha, presente um ano antes no artigo escrito por X, publicado no jornal Folha da Manhã, de 21-11-1943: “Religiosamente, os drusos são obrigados a falar sempre a verdade, mas apenas entre os drusos, não importando que mintam, e sendo até seu dever, por vezes, mentir a sectários de outros credos. Os drusos são contrários à prece porque acham que a prece é uma forma impertinente de a vontade humana interferir na vontade de Deus – e isto, para eles, constitui sacrilégio irreparável. É rigorosamente proibido o uso do tabaco e do vinho. E a disciplina ascética, embora não exigida de ninguém, nem dos sacerdotes, é contemplada com profundo respeito. Os sacerdotes da seita, que se formou de uma ocasional mistura de credos sunitas com credos ismaelitas, são todos homens de imperturbável serenidade e de incrível capacidade na conservação de segredos. Dentro desta estranha religião, abriu-se, um dia, um conflito. Em consequência, no ano de 1190 da era cristã, Hassa-ibn-Sabá fundou uma associação secreta, que, embora observando os ditames religiosos e rituais da seita, resolvia seus assuntos externos por meio do assassínio. Ao que se sabe, a referida associação secreta de delinquência política e religiosa tinha, entre outras, esta peculiaridade: exigia o máximo de obediência e de renúncia aos interesses terrenais, dos seus adeptos. Antes da prática da eliminação da vida de quem quer que fosse, os adeptos eram intoxicados com “haschich”, substância entorpecente do tipo dos opiados, extraída da folha do cânhamo. (Cannabis Indica). No período da intoxicação, os adeptos eram levados a jardins suntuosos, povoados de mulheres magníficas, onde se lhes ofereciam todos os prazeres, como prelibação do paraíso que os esperaria, se eles fossem sempre obedientes. Depois disto, realizavam-se os crimes políticos ou religiosos determinados pelos superiores. Devido ao “haschisch”, os membros da seita eram denominados “haschichins”, de onde, através dos anos, por fenômenos que a semântica explica, resultou a palavra “assassino”. A “ordem dos hachichins”, com efeito, figura, em qualquer livro erudito, com nome de “ordem dos assassinos”. O chefe da seita era tão rigoroso, que, pouco antes de morrer, já em idade muito avançada, mandou matar seus dois filhos, um por ser suspeito de cumplicidade no assassínio de um elemento que não deveria ser eliminado, e outro por haver sido colhido em ato flagrante de beber vinho”6.
O rigor com que o Velho da Montanha assassina seus dois filhos para manter a ordem no interior da seita talvez parecesse horroroso ao leitor brasileiro dos anos 1940, extremamente compatível com as políticas que então estavam em curso com a formação no país de agencias de controle e repressão da maconha em nível nacional, estadual e municipal, porque afinal, combater o flagelo da humanidade era o dever de todos na sociedade. Estavam motivados em impedir a difusão do vício entre os cidadãos de bem, brancos e desbotados, fumantes de cigarrilhas Grimauld, cigarros de maconha importados da França, a tão chiquérrima França. Embora o trabalho de Jayme Regalo Pereira seja voz dissonante em relação aos colegas de profissão, demonstrando que a maconha não é a causa de tais comportamentos criminosos, mas de responsabilidade dos próprios indivíduos infratores, como reconhece também Elizabeth Remini no livro O Barato da História, o mito é citado para demonstrar o quão antigo era o hábito entre nós. Fato que se comprova com a descrição completa da história do Velho da Montanha, demonstrando o quão rígido era o chefe da ordem na condução da organização religiosa.
Em todo caso, apesar da história aparecer nestes trabalhos brasileiros, já se fazia presente no livro Paraísos Artificiais, de Charles Baudelaire, citado por alguns dos autores comentados até aqui. Tratava-se do Clube dos Haschichins, que nos anos 1850 reunia literatos e as mais belas mulheres no Hotel Pimodam, em Paris. Segundo Baudelaire, “as narrativas de Marco Polo, das quais erroneamente rimos, como de alguns outros antigos viajantes, foram verificadas pelos eruditos e merecem nossa crença. Não contarei, como ele já o fez, como o Velho da Montanha trancava após havê-los embriagado com Haxixe (de onde Haxixin ou Assassinos), em um jardim cheio de delícias, os seus mais jovens discípulos, aos quais queria dar uma ideia de paraíso, recompensa merecida, por assim dizer, em troca de uma obediência passiva e irrefletida7“.
Eis aqui que compreendemos o uso do haxixe para a “fanatização” de seus discípulos. Pensando que o conceito de Jihad, ou guerra santa contra os infiéis, oferecer antecipadamente o paraíso àqueles que se sacrificariam pela religião, e não após seus sacrifícios. Obedecia-se cegamente a um homem que já havia lhes dado o paraíso na prática. Cruzadas. Ao contrário, os comentadores não se atentaram para critérios próprios a religião, mas preferiram demonstrar o quão antigo é o vínculo do haxixe com assassinatos. A mesma métrica não serve aos cristãos invasores, que após árduas batalhas, se sobrevivessem, encontrariam prazer nos bordéis, regados a vinho, encenando verdadeiros bacanais, ao modo do pagão Dionísio.
O fato é que a história da ordem dos assassinos é usada para frisar o que diferencia os cristãos dos muçulmanos, ou seja, além dos mais sórdidos e infiéis comportamentos, o hábito de fumar haxixe e seus derivados. A mesma distinção que orientou o Velho da Montanha a condenar a morte o filho surpreendido bebendo vinho, hábito de cristãos, inimigos da verdadeira fé. Deste modo, os “Assassins medievais fundaram um “Estado” que consistia de uma rede de remotos castelos em vales montanhosos, separados entre si por milhares de quilômetros, estrategicamente invulneráveis a qualquer invasão, conectados por um fluxo de informações conduzidas por agentes secretos, em guerra com todos os governos, e dedicando-se apenas ao saber e ao assassinato de lideres cristãos8“. Eis o mito fundador que aterrorizou o ocidente por gerações e gerações, e que encontraria em histórias genuinamente nacionais espaço para florescer, tema de um próximo trabalho.
1 Doutorando em História pela UNESP FCL-Assis (Bolsista FAPESP). É pesquisador associado ao grupo de pesquisa Maconhabras/CEBRID – Centro Brasileiro de Informações Sobre Drogas Psicotrópicas/Escola Paulista de Medicina – UNIFESP. Editor do site www.cannabica.com.br.
2 DÓRIA, Rodrigues. Os Fumadores de Maconha: Efeitos e Males do Vício, p. 3. In: Maconha: Coletânea de Trabalhos Brasileiros. Rio de Janeiro: Serviço Nacional de Educação Sanitária, 1958. 2ª Edição.
3 BARBOSA, Oscar. O Vício da Diamba, p. 30. In: Op. Cit.
4 No original do dicionário Littré: Assassin, – s.m. Historique: : Le Vieil de la montaigne savoit bien que, si il en feist un tuer [grand-maître des Templiers], l’en y remeist tantost un autre aussi bon ; et pour ce ne vouloit il pas perdre les assacis en lieu là où il ne peut riens gaainger. Et pour ce ne font force li assacis d’eulx faire tuer, quand leur seigneur leur commande, pour ce que il croient que il seront assez plus aise quant il seront mors que il n’estoient devant.
5 PEREIRA, A. de P. Leonardo. O cânhamo ou a diamba e seu poder intoxicante, p. 42. In: Op. Cit.
6 PEREIRA, Jaime Regalo. Contribuição para o estudo das plantas alucinatórias, particularmente da maconha, p. 127. In: Op. Cit.
7 BAUDELAIRE, Charles. Paraísos Artificiais. Floresta-RS: L&PM, 2001, p. 15.
8 BEY, Hakim. TAZ – Zona Autônoma Temporária. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2004, 2ª Edição, p. 12.