Em debate durante a ExpoCannabis 2015, realizada em dezembro no Uruguai, integrantes de clubes discutiram possibilidades e desafios desta que é a a forma mais autogestionada prevista de acesso legalizado à maconha no país
Júlio Delmanto,
do COLETIVO DAR
Neste 10 de dezembro – coincidentemente o Dia Internacional dos Direitos Humanos – se completarão dois anos da aprovação da legalização da maconha pelo Senado do Uruguai, primeiro país a regulamentar consumo, produção e distribuição da erva no mundo. A partir da aprovação da lei, foram previstas quatro formas excludentes de acesso legal à verdinha, com cada usuário podendo se registrar em apenas uma: plantio para uso pessoal, venda em farmácias, uso medicinal e ingresso em um clube de canábis. Porém, dois anos depois, os avanços tão celebrados ainda não se concretizaram plenamente, como ficou claro nos debates realizados na segunda edição da ExpoCannabis, feira realizada entre os dias 5 e 7 de dezembro em Montevidéu na qual o DAR esteve presente.
Com pé fincadíssimo no business, parecendo um cheiroso shopping de maconheiros, o evento contou também com conferências, filmes, shows de artistas locais e até com um consultório de canábis medicinal – nas palavras do cantor Martin Buscaglia, que fez o show de encerramento da Expo, ali estava reunido um “vestígio do futuro”. Na parte dos debates, o mais interessante provavelmente foi o de título “Clubes de canábis, um modelo para armar”, que contou com a presença de dois membros da organização ativista Proderechos e integrantes de clubes canábicos. (A inspiração do nome da mesa vem do livro 62 – modelo para armar, do escritor argentino Julio Cortázar.)
Alguns dos hermanos y hermanas do coletivo Proderechos, que foi fundamental para o processo de legalização, fazem parte de um clube, o CLUC (também visitado pelo DAR há uns meses), sigla para Cultivando la Libertad, Uruguay Crece, e esses dois grupos juntos têm se empenhado em difundir o modelo de clubes pelo país, incentivando e ajudando as pessoas a organizá-los. Para isso criaram inclusive um site genial, o Armá tu club, com todo tipo de informação necessário sobre o assunto- vale muito a pena conhecer.
Do Proderechos e do CLUC estavam na mesa Florencia e Damián, e segundo a primeira, o clubes são apoiados por eles por serem uma forma não mercantil de acesso à maconha. Além disso, permitem o aprendizado do cultivo e de uma melhor relação com a planta, a criação de um espaço permanente de debate e encontros e a possibilidade dos membros poderem participar de uma experiência autogestionada e autossustentável. Mas, como eles mesmo mostraram, nem tudo são flores nesse processo.
Segundo a lei, os clubes devem ter um mínimo de 15 membros e um máximo de 45, um máximo de 99 plantas florescendo, devem se constituir como associações civis sem fins lucrativos e posteriormente serem registrados junto ao governo através do INCA, Instituto Nacional de Cannabis. De acordo com Damián, há diversos problemas na regulamentação dos clubes, desde as dificuldades financeiras por conta do limite de 45 membros, que tornaria os custos um pouco altos, até a enorme demora da burocracia estatal em autorizar e registrar as associações canábicas – hoje o prazo médio tem sido de cinco meses no mínimo, e há apenas três clubes oficialmente registrados em dois anos de “legalização”. E nas ruas em geral o que se vê é nosso velho conhecido prensado.
Florencia e Damián destacaram também o papel fundamental da informação na difusão da ideia dos clubes, e o segundo lembrou também a importância do custo ser acessível para que não haja concorrência do mercado paralelo e prensado. Bastante significativo foi o momento em que ele disse que os preços atuais cobrados dos membros do CLUC estão no mesmo dos previstos para a maconha vendida em farmácia – “SE É QUE ELA UM DIA EXISTIRÁ”. Ou seja, há evidente desconfiança e desânimo entre os ativistas não só com a demora do processo mas com um possível risco de retrocesso.
Damián explicou também como o CLUC divide suas tarefas, sugeriu um tamanho mínimo de 150 metros quadrados para atender a 45 pessoas, e contou que eles começaram com 45 plantas, pois mais do que isso poderia ser um risco maior de pragas e outros problemas. A contribuição mensal dos membros tem sido de 1100 pesos uruguaios, cerca de 140 reais, o que garante 30 ou 40 gramas por mês a um preço entre 28 e 37 pesos por grama, valor compatível com o que supostamente será cobrado nas farmácias. Para o ativista, o clube é uma opção híbrida entre a compra em farmácia e o plantio individual, trazendo um pouco dos benefícios de cada opção.
Florencia comentou ainda que a meta atual é difundir os clubes e ajudar a consolidá-los, mas que também é um objetivo que futuramente os clubes possam se articular de forma permanente em alguma espécie de rede ou federação, o que evidentemente seria muito foda.
Luz verde e Tricoma
Também participaram da mesa dois integrantes do clube Tricoma, que faz plantio indoor, e um do Luz Verde, que planta externamente em local não divulgado por conta de segurança contra roubos – uma das grandes preocupações entre todos os membros de clube, e todos cultivadores em geral.
Ito, do Luz Verde, contou que o clube fará um ano na semana que vem, e que sua criação teve a ajuda do pessoal do CLUC. Eles alugaram uma chácara e conseguiram colher 15kg em sua primeira safra, o que seria insuficiente para cobrir o ano todo dos membros, para o que necessitariam de uns 20kg. Eles semearam o máximo possível de plantas, 99, e instituíram cotas para os membros, que podem escolher entre retirar 15, 30 ou 40 gramas por mês, pagando um valor proporcional. O valor inicial de matrícula para os membros foi de 570 pesos, cerca de 72 reais.
O esquema do Luz Verde é bem roots, e segundo Ito isso foi intencional desde o início, para buscar baixar o máximo possível os custos. Todos os membros são convidados e incentivados a participar das tarefas práticas de plantio, colheita, etc., e a segurança foi resolvida de uma forma peculiar: a partir do último mês antes de colher eles montaram uma barraca no lugar e passaram a fazer eles mesmo a vigilância, com gente dormindo lá todos os dias. Ele lembrou que a questão da segurança é mais séria nos clubes externos, e disse também que até hoje, em um ano, não houve nenhuma fiscalização do governo.
Já o Tricoma funciona de forma bem diferente. O plantio é indoor, e há dois cultivadores profissionais pagos pelos seus membros, Pedro e Frederico, que foram os que participaram da mesa. Ambos já eram cultivadores “solo”, e decidiram experimentar duas formas de cultivo indoor no Tricoma, hidropônico e orgânico. O espaço de floração é de 3m por 1,5m, e para ser melhor aproveitado eles inverteram a lógica, transformando as paredes no piso e fazendo cultivo vertical. O clube tem hoje 20 sócios, e Pedro e Frederico reclamam que o limite de 99 plantas é muito baixo, para eles poderia ser até o triplo.
Ao final, Florencia e Damián foram questionados se acreditavam que o modelo dos clubes canábicos poderia ser implementado também nos possíveis – e desejados! – casos de legalização de outras substâncias, mas eles, apesar de defenderem a legalização de todas as drogas atualmente proibidas, não se aprofundaram na resposta, demonstrando que infelizmente esse debate ainda não está maduro entre os ativistas uruguaios, que dirá no resto do mundo.
Em outros momentos de debate do evento, foram criticadas as demoras do governo em implementar as outras formas de acesso legalizado à canábis, que nem sequer em sua forma medicinal está disponível para o público. De qualquer jeito, mesmo com as enrolações e burocracias do modelo uruguaio, quem nos dera nos preocupar com esse tipo de problema no Brasil, não com a necessidade de legalizar mas com a melhor forma de fazer isso…