Algo pode ser mais inócuo do que uma boa xícara de chá? Com essa pergunta inicia o artigo de Hadley Meares, publicado em inglês com o título de When Sipping Tea Was A Socially Ruinous Act, algo como Quando bebericar chá era um ato socialmente ruinoso ou Quando tomar chá podia te arruinar socialmente. Após lembrar que hoje vemos o costume de tomar chá como algo a ser compartilhado com nossos filhos e avós, ela destaca que nem sempre foi assim: “surpreendentemente, houve um tempo em que o chá era visto como uma ameaça aos valores tradicionais do cristianismo – e da hierarquia social do mundo ocidental”!
No artigo, que pode ser lido na íntegra aqui, infelizmente apenas em inglês (alô tradutores voluntários!), a autora aponta que o chá era praticamente desconhecido fora da Ásia até meados do século 16, quando chás chineses e indianos passaram a fazer parte do incipiente mercado global de commodities aberto (na porrada) pelos europeus. Desde esse momento, os europeus teriam visto o chá com os mesmos olhos assustados com que viam o ópio, como algo perigoso, viciante e possivelmente contaminante de seus hábitos e valores. Apesar de ter sido introduzido na corte do Rei Carlos II e outros espaços de elite, este costume passou a ser alvo de debates acalorados entre parte das elites europeias.
O costume de beber chá, como demonstra o artigo de Measer com diversos exemplos, era criticado sobretudo por ser um hábito alheio à cultura europeia, um costume estrangeiro, e por ser aditivo, causador de dependência. Uma mistura portanto de xenofobia – que por sua vez é uma forma de racismo – e pânico causado por desconhecimento ou exagero das propriedades da substância em questão. Segundo Measer, alguns dos críticos anunciavam que o consumo de chá poderia levar ao alcoolismo, ou seja, ao vício em outras drogas.
Isso lembra algo não?
Measer destaca que de fato os debates enfocavam duas substâncias com considerável potencial de adição e alteração de comportamento: a cafeína e o açúcar, que estavam contidos no chá consumido. Salta aos olhos como em tão pouco tempo o tratamento dado a essas substâncias mudou, uma vez que os exemplos dessa controvérsia levantados no artigo vão ao menos até o século 19. As mesmas substâncias que eram vistas como capazes de “destruir” pessoas e famílias hoje são absolutamente toleradas e naturalizadas, enquanto outras, que ninguém conhecia ou dava bola, hoje são a bola da vez, o bode expiatório, o alvo pra preconceitos e interesses distantes da saúde das pessoas. Ou o mundo piorou muito com o consumo de chá sendo espalhado e virando até uma indústria como hoje em dia?
Os ataques ao chá tinham como base outro velho conhecido, o machismo. O texto de Measer traz também interessantes exemplos de como discursos que rejeitavam o consumo de chá diziam-se particularmente preocupados com o uso por parte das mulheres, que poderiam se tornar viciadas e, por perderem todo dinheiro, depois “arruinarem suas famílias, que não teriam mais os alimentos para sobreviver”. Um panfleto chegava a dizer que “os tempos nunca serão bons até que os homens pobres larguem o uísque e as mulheres pobres o chá”.
Como destaca a autora, a verdade era que os homens da elite estavam preocupados que o ato de tomar chá propiciava às mulheres um espaço de convivência social longe dos homens, que por sua vez sempre tiveram seus bares e esportes para confraternizar enquanto as damas ficavam em casa alimentando os filhos. “Era temido que essa atividade sociável fosse levar a outras atividades mais virtuosas, induzindo a preguiça e a irresponsabilidade doméstica em geral”, diz um artigo de Hellen O’Cornell, citado por Measer (pode ser lido aqui, também em inglês fazer o que).
Nesse artigo, O’Cornell explora panfletos e pequenas histórias produzidas por legisladores e reformistas irlandeses, que estavam preocupados que “as mulheres bebedoras de chá sugeriam ou simbolizavam agências femininas (proto feministas) e de baixa classe problemáticas em tempos de ansiedade revolucionária geral do fim do século dezoito e do início do dezenove”.
Ironicamente, Measer comenta que os que diziam que o consumo de chá iria corromper os valores europeus tinham razão, uma vez que não só ele se tornou tão costumeiro na Inglaterra a ponto da parada para o chá ser normal em repartições públicas desde o século 19 como as rodas de chá ajudaram as sufragistas de Manchester, que lutavam pelo direito ao voto, a espalharem sua mensagem e discutirem seus planos sem a vigilância masculina.
Mesmo assim, ainda havia gente que tratava o consumo de chá, sobretudo por parte das mulheres, como algo da esfera do vício e da luxúria. Segundo Measer essa visão só foi perder força de vez com a Primeira e a Segunda Guerras, tempos em que ingleses e americanos “tinham coisas muito mais importantes para se preocupar do que com o consumo de chá”. Infelizmente hoje em dia seguimos tendo um montão de coisa pra se preocupar, e tem gente que ainda acha que os pobres e as mulheres não podem escolher que chá eles devem ou não usar.
Oficiais ingleses tomam chá durante pausa na Primeira Guerra Mundial.