Uma pesquisa publicada recentemente pelo governo do Colorado, nos Estados Unidos, mediu o uso da maconha entre 17 mil estudantes do Ensino Fundamental. Pouco mais de dois anos depois de legalizar o uso da substância, dados mostram que o consumo dos adolescentes continua similar a antes da legalização. Cerca de 38% dos entrevistados disseram ter usado maconha pelo menos uma vez na vida e 21% afirmaram que usaram a substância nos últimos 30 dias, taxa que acompanha a média nacional. Quatro em cada cinco estudantes (78%) nunca utilizaram marijuana.
Isso derruba o argumento de que a legalização da maconha estimularia seu uso. “Essas estatÃsticas claramente desmascaram a teoria de que tornar a maconha legal entre adultos resultaria em mais uso por adolescentesâ€, disse, em comunicado, Mason Tvert, diretor de comunicação do Marijuana Policy Project, maior organização norte-americana contra a proibição da erva. Para Tvert, o Colorado está provando que “não é necessário prender centenas de adultos consumidores responsáveis com o argumento de prevenir o consumo por adolescentesâ€.
O governador do Colorado, John Hickenlooper, esteve no Brasil na semana passada. Ele foi contra a legalização da maconha no plebiscito de 2012, mas admitiu ter mudado de opinião. Confirmou também que sem o tráfico é mais difÃcil que as crianças tenham acesso à planta.
De acordo com MaurÃcio Fiore, coordenador cientÃfico da Plataforma Brasileira de PolÃtica de Drogas, um dos principais motivos para os nÃveis de consumo de maconha por adolescentes se mantenham e não aumentem com a regulamentação é que a droga já estaria disponÃvel ilegalmente para os jovens. “Vendê-la legalmente não alterou muito esse quadro. Pelo contrário, pode ter tornado um pouco mais difÃcil para um adolescente comprar maconhaâ€, explica.
O Instituto Nacional de Abuso de Drogas, instituição dos Estados Unidos que tem como missão o avanço cientÃfico sobre as causas e consequências da dependência de drogas, alerta que a maconha pode causar vÃcio. As pesquisas apontam que 9% dos usuários se tornam dependentes e que esse potencial aumenta para quem faz uso de maconha na adolescência, chegando a 17%.
O fracasso da “guerra à s drogasâ€
Os primeiros dados da polÃcia de fronteira dos Estados Unidos pós legalização mostram que houve uma forte diminuição na apreensão de maconha na fronteira com o México. CaÃram de um pico de 2 mil toneladas em 2009 para 750 toneladas no ano passado, o menor nÃvel na última década. Pode ser cedo para relacionar com a nova polÃtica de drogas, mas junto com o fato de o consumo não ter aumentado, essa passa a ser uma importante tendência.
Essa reversão seria também uma prova de que os 45 anos de polÃtica de guerra à s drogas não funcionaram para diminuir o consumo de entorpecentes. Pior ainda: a repressão militar ao tráfico de drogas ajudou a criminalizar consumidores, promoveu o encarceramento em massa e recrudesceu penas para qualquer traficante, o que ajudou a superlotar presÃdios. Além de tudo isso, não diminuiu o consumo. Segundo as Nações Unidas, em 10 anos, o consumo de opiáceos, cocaÃna e cannabis aumentou entre 1998 e 2008, auge da polÃtica proibicionista.
Essa é também a conclusão da Comissão Global de PolÃticas de Drogas, composta por 22 lÃderes do mundo todo que atuam sobre o tema (o Brasil é representado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso). A comissão ratificou em abril seu posicionamento de 2011, em que afirma que “o problema das drogas é um desafio interligado para a saúde e a segurança das sociedades muito mais do que uma guerra a ser vencidaâ€.  E coloca a perspectiva da polÃtica de drogas no âmbito dos direitos humanos e da saúde mental, para além da segurança pública.
Brasil e o “crime de tráfico privilegiadoâ€Â
Na última quinta-feira (23), o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou que o crime de tráfico privilegiado (em que o agente é primário, tem bons antecedentes, não se dedica a atividades criminosas, não integra organização criminosa) não é equiparável aos crimes hediondos. “É uma vitóriaâ€, afirma Rafael Custódio, coordenador do programa de Justiça da ong Conectas. “A equiparação apenas agravaria a situação da população empobrecida e negra das periferias, especialmente as mulheres, que por uma situação de vulnerabilidade social acabam exercendo pequenas funções dentro das redes de tráficoâ€, completa.
Com essa decisão, pessoas condenadas por pequeno tráfico terão regime de progressão de pena igual ao de presos comuns, ao contrário do que vinha acontecendo. O IBCCrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), o ITTC (Instituto Terra, Trabalho e Cidadania), Instituto Igarapé, a Plataforma Brasileira de PolÃtica de Drogas e a Conectas, organizações da sociedade civil, foram importantes argumentadores a favor da nova medida.
O crime de tráfico de drogas é o principal responsável pelo encarceramento no paÃs. Segundo dados de dezembro de 2014 do Ministério da Justiça, 27% da população carcerária responde por crimes relacionados ao tráfico de drogas. Considerando apenas as mulheres, a taxa sobe para 63%. Existem no PaÃs mais de 620 mil pessoas encarceradas, é a quarta maior população prisional do mundo. Todos os estados brasileiros têm déficit de vagas no sistema. Alagoas tem a situação mais crÃtica: 3,7 presos ocupam a mesma vaga.
A mudança no crime de tráfico privilegiado poderia ser um primeiro passo em direção a polÃticas de enfrentamento à s drogas que considerem, também no Brasil, as dimensões social, humana e de saúde. Mas se trata apenas de um recorte capitaneado pelo Supremo. A Plataforma Brasileira de PolÃtica de Drogas denunciou, no começo de junho, que o governo interino de Michel Temer pretende tratar a polÃtica de drogas sob a perspectiva militar. Temer nomeou o coronel da PolÃcia Militar Roberto Allegretti para comandar a Secretaria Nacional de PolÃticas sobre Drogas. Allegretti é um dos escudeiros do ministro da Justiça, Alexandre de Moraes.
“São alarmantes os sinais de que essa área do governo interino seja conduzida por uma perspectiva militar – a guerra à s drogas – e, assim, esteja centrada na repressão da oferta, uma estratégia fracassada que nunca foi capaz de diminuir os danos potenciais decorrentes do uso de substâncias ilÃcitas. Reforçar a guerra à s drogas é agravar o já inaceitável quadro da violência no Brasil, que há mais de uma década conta seus homicÃdios em dezenas de milhares, vitimando majoritariamente os grupos populacionais mais pobres e etnicamente discriminados, como os jovens negrosâ€, diz nota da Plataforma Brasileira de PolÃtica de Droga.
É o Brasil na contra-mão do mundo.