Para cada policial assassinado no Rio de Janeiro em 2015, outras 25 pessoas morreram em decorrência de intervenções policiais. A informação está em um levantamento realizado com base em dados do ISP (Instituto de Segurança Pública) e divulgados pela organização Human Rights Watch. No ano passado, 645 pessoas foram mortas em ações envolvendo as polÃcias Civil e Militar. No mesmo perÃodo, 23 policiais militares e três policiais civis foram mortos em serviço.
A Human Rights Watch lançou nesta quinta-feira (7) o relatório “O Bom Policial Tem Medo: Os Custos da Violência Policial no Rio de Janeiro”. No texto, a entidade diz que os números endossam “o entendimento das autoridades de que execuções extrajudiciais são bastante comuns” no Estado.
“O número de mortos por ação policial é muito maior do que o número de baixas na polÃcia, fazendo com que seja difÃcil acreditar que todas estas mortes ocorreram em situações em que a polÃcia estava sendo atacada”, diz o relatório.
O documento examina as medidas tomadas para assegurar a responsabilização criminal por abusos policiais no Estado. Esse aspecto tem como base 64 casos de uso da força letal considerados ilegais pela ONG e 88 entrevistas realizadas entre novembro de 2015 e maio 2016 — 34 delas, com policiais. Nesses 64 casos, 116 pessoas morreram, sendo ao menos 24 com menos de 18 anos.
“O Rio enfrenta um problema sério de criminalidade violenta, mas executar suspeitos não é a solução. Essas execuções colocam as comunidades contra a polÃcia e comprometem a segurança de todos”, disse Maria Laura Canineu, diretora da Human Rights Watch no Brasil. “Não se pode esperar que o policiamento de proximidade funcione quando a polÃcia continua a executar membros das comunidades que deveria proteger.”
Procurada pelo UOL, a Secretaria de Segurança Pública informou que ainda não havia tido acesso ao relatório e por isso não poderia comentar os dados. Questionada especificamente sobre a relação entre o número de policiais mortos em serviço e o número de homicÃdios decorrentes de intervenção policial, a secretaria não havia respondido até as 22h desta quarta-feira (6).
A organização compara a relação entre as pessoas mortas por policiais e os policiais mortos em serviço no Rio com dados da Ãfrica do Sul — 11 civis mortos para cada policial — e dos Estados Unidos, em que, em média, nove pessoas são mortas a cada policial assassinado.
Para a instituição, “o governo do Rio prometeu melhorar o policiamento no Estado, mas não abordou o problema da impunidade por execuções extrajudiciais cometidas pela polÃcia, que contribuem com o ciclo da violência e comprometem a segurança pública”.
Entre as razões elencadas pelo relatório para a letalidade da polÃcia fluminense, estão o conluio dos policiais com criminosos, uma cultura policial que estimula a violência, estresse e treinamento insuficiente no uso legÃtimo da força.
“Minha experiência inicial como policial foi a de matar bandidos. É o que era exigido como bom resultado por meus superiores… A cultura no batalhão era essa, era a morte. Em tom de brincadeira, todo final de serviço perguntavam: ‘Prendeu alguém, matou alguém?’… Se você deu um tiro e não foi fatal, você terminava de matar. Eu vi isso acontecer mais de uma vez”, afirmou um dos policiais entrevistados para o estudo, identificado apenas como Danilo.
Nos 64 casos documentados, a Human Rights Watch considera que há indÃcios claros de que os policiais procuraram acobertar a natureza criminosa das mortes. Destes, o relatório aponta que apenas oito foram a julgamento e quatro resultaram na condenação dos policiais envolvidos. Em 52 dos casos, não havia registro algum de que peritos policiais analisaram a cena do crime. Em 36 deles, promotores de Justiça nem sequer apresentaram denúncias.
“O uso ilegal da força por policiais tem outro impacto ainda mais direto na polÃcia: os colegas daqueles que cometem execuções têm que escolher entre ficarem calados e até participarem do acobertamento (violando assim a lei) ou denunciarem a ação e enfrentarem represálias que podem inclusive ser fatais”, afirma o texto.
Entre as táticas usadas pelos policiais para acobertar os crimes elencadas pela ONG, estão intimidação de testemunhas, forjamento de provas, remoção de roupas das vÃtimas e falsos “socorros”. “Uma técnica comum é remover o cadáver da vÃtima da cena do crime e levá-lo a um hospital, alegando a tentativa de ‘socorrer’ a vÃtima. Esses falsos ‘socorros’ servem para destruir provas na cena do crime ao mesmo tempo em que simulam um ato de boa-fé por parte dos policiais”, aponta o relatório.
Dos 32 casos examinados pela Human Rights Watch nos quais a polÃcia levou uma vÃtima baleada para o hospital, em pelo menos 27 deles as vÃtimas já chegaram mortas.
A organização considera que a a PolÃcia Civil, no geral, não realiza exames no local em que ocorrem mortes por intervenção policial nem questiona adequadamente policiais e testemunhas. Segundo o texto, em apenas 14 dos 64 casos examinados foram encontrados registros indicando a presença de investigadores da PolÃcia Civil ou de equipes de perÃcia na cena do crime.
O relatório também aponta falhas no controle externo das investigações por parte do Ministério Público e a ausência de controle sobre policiais que cometem múltiplos homicÃdios.
“Um pequeno número de batalhões é responsável pela maioria dos homicÃdios cometidos pela polÃcia no Estado do Rio de Janeiro e, em alguns casos, os mesmos policiais estiveram envolvidos em um número desproporcionalmente elevado de incidentes. Ainda assim, o Ministério Público nunca sujeitou esses batalhões e policiais com os mais altos números de registros letais a uma análise mais minuciosa”, informa o texto.
A Human Rigths Watch, no relatório, ressalta o impacto do alto número de mortes na rotina dos policiais. De acordo com a organização, isto aumenta o perigo da atividade policial, a pressão para apoiar, acobertar e participar de execuções, causa danos psicológicos nos agentes e incentiva o aumento da criminalidade policial. “Execuções extrajudiciais aumentam esse medo exponencialmente, incitando a dinâmica de ‘matar ou morrer’, segundo a qual os criminosos são mais propensos a atirar do que se render”, diz o documento. (Com Estadão Conteúdo)