Rodrigo Lima, 16, morreu com dois tiros na cabeça, mas sua sombra continuou a aparecer para sua mãe, a diarista Maria de Lima, 50. Surgia no portão, na sala, na mesa da cozinha. “Fiquei assustada. Aquela sombra… Tive que me mudar”, conta ela.
Maria deixou Munhoz Jr., bairro de Osasco onde Rodrigo viveu seus últimos dias. Há um ano, ele e outras 18 pessoas foram mortas em uma chacina na Grande SP. Por diversos motivos ligados aos crimes, outros familiares das vÃtimas fizeram o mesmo caminho.
De pé na cozinha da nova casa, Maria fala baixo quando se lembra que, uma hora antes do filho ser morto, ela o encontrou chorando na calçada. “Ele até soluçava. Perguntei, mas ele não quis dizer o motivo. Nunca vou saber o motivo”, diz, contida.
Um ano depois, as mães dos mortos da chacina falam dos filhos sempre assim: baixo, com a voz trêmula, como se fossem chorar a qualquer momento. Elas seguram enquanto podem. De repente, uma lembrança qualquer faz cair uma lágrima, e outras. E então elas desabam.
Com Maria, por exemplo, isso acontece quando ela se lembra do jeito que encontrou Rodrigo: as pernas para dentro, o tronco e a cabeça para fora da sorveteria onde ele levou dois tiros. “Essa imagem não sai da cabeça”.
Já a cozinheira Antônia Gomes, 47, chora quando fala dos três netos, filhos do seu filho Jailton Vieira, 28. O pedreiro foi morto enquanto tomava cerveja no Bar do Juvenal, em Munhoz Jr. Ali, foram oito mortos de uma só vez.
Jailton era quem sustentava a casa. A missão ficou com Antônia, que não pode trabalhar porque precisa cuidar dos netos e de uma mãe doente. Sem dinheiro para o aluguel, ela precisou se mudar para a casa de parentes. Vive de doações de amigos.
NÃO ACABOU
Neste ano, Antônia e outros familiares das vÃtimas foram ao Palácio dos Bandeirantes, sede do governo paulista, para pedir indenizações pelo fato de os crimes terem sido praticados por policiais. Foram recebidos por assessores do governador Geraldo Alckmin (PSDB).
O governo pode indenizar as famÃlias por decreto, mesmo antes do fim do processo. A Procuradoria do Estado, responsável por autorizar a reparação, afirmou, porém, que não recebeu nenhum pedido sobre indenizações.
“Eles [policiais] acham que preto e pobre é tudo bandido. Falei isso no Palácio. Os assessores disseram que não é bem assim. Mas você acha que esses ricos vão dar ouvido pra mim? Quem sou eu?”, diz Antônia, alterando a voz.
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“Até agora não acabou”, fala o atendente Jean Lopes, 35, marido de Eduardo Oliveira, 41, que também foi morto no bar. Dias depois dos crimes, sua casa foi arrombada. Jean chamou a polÃcia.
“Um policial me disse que todos os que morreram no bar eram bandidos. Eu falei que não era verdade”, afirma.
O atendente conta que um dia foi seguido por um carro. O veÃculo parou na frente da sua casa. Com medo, ele mudou de cidade e abandonou o emprego.
“Quando durmo tenho pesadelos horrÃveis com a cena daquele dia: o Eduardo, sentado, a cabeça pendendo para um lado e uma poça de sangue no chão”, conta.
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Bar em Osasco, na Grande São Paulo, onde morreram oito das 19 vÃtimas da chacina |
A professora Aparecida Gomes, 54, ficou no bairro. Passa todos os dias em frente ao bar onde seu filho, o mecânico industrial Leandro Assunção, 34, também foi morto. Naquela noite, Leandro foi ao local para tomar cerveja.
“Fico mais triste quando penso que foram policiais. Não havia motivo, mataram por prazer”, diz Aparecida. Ela chora quando segura o último selfie do filho, feito por ele horas antes da chacina. Leandro deixou três filhos.
A ÚLTIMA MARCA
A diarista Zilda de Paula, 63, chora ao olhar para uma linha riscada por seu filho no teto de casa. É a última marca deixada pelo pintor Fernando de Paula, 34.
“Ele estava pintando a casa. Riscou o teto porque, a partir dali, mudaria a cor da tinta”, explica Zilda. A casa ficou como estava: pintada pela metade, CDs de samba na estante uma caricatura de Fernando, desenhada em 1989 e posta na parede.
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Bar na rua Antônio Benedito Ferreira, em Osasco, um ano depois de chacina |
A diarista montou a Associação 13 de Agosto, que reúne familiares das vÃtimas. Buscam punição e indenizações. “Queremos justiça. Alguns [policiais] estão presos, e outros, soltos. Quantas mães vão ter que chorar?”, diz.
Ela pega um celular e mostra um grupo de mensagens com mães de vÃtimas. “Olha a voz dessa mãe aqui… Não é uma tristeza?”, pergunta a diarista.
O grupo se chama “As vozes das estatÃsticas”.