As lágrimas molham o rosto de quem não perdeu a capacidade de se indignar neste inÃcio de ano. Os fogos de artifÃcio e de arma que rasgaram a virada do réveillon deram o tom do que estava por vir em seguida: a maior matança no sistema carcerário desde o inominável episódio do Carandiru, em 1992.
Tento fazer um exercÃcio de previsão para imaginar como será no futuro, daqui algumas décadas, quando olharam para o hoje e para essa matança que aconteceu por conta de disputa pelo controle de drogas. Será que a criminalização chegará até lá? Se o absurdo dessa realidade racista que apenas serve para matar e encarcerar pessoas pobres e negras já está escancarado nos tempos presentes, como será quando a polÃtica de drogas atual for superada?
Só sei que o dia de superação da guerra à s drogas não está próximo e a matança não tem hora para acabar. Pelo contrário. Basta perceber que o responsável pelo Ministério da Justiça atual usa seu tempo para ir ao Paraguai capinar lotes de maconha e fala em extirpar a droga da América Latina, fazendo o paÃs passar vergonha internacionalmente. Fora do campo do ridÃculo, o ministro na última semana esvaziou o Departamento e o Fundo Penitenciário para contratar sua própria milÃcia estatal. Se não estivéssemos tão acostumados com o absurdo, talvez isso seria um bom motivo para ele ser afastado do cargo.
Mas não se deve pessoalizar o presente triste e o futuro desanimador em Alexandre de Moraes e em seu chefe, Michel Temer. Guerra à s drogas é coisa antiga no paÃs e os governos do PT, do PSDB, passando pelos generais, sempre capitalizaram nela e no tentador punitivismo. Dilma, em seu último dia no cargo, negou o indulto para mulheres acusadas de pequenos tráficos e, no primeiro mandato, afastou o responsável pela Secretaria Nacional de PolÃtica de Drogas por ele ser favorável à legalização. Lula apenas passou para o discurso dos direitos humanos no campo processual sentiu o hálito da inquisição em seu rastro e Fernando Henrique, hoje estrelando o documentário Quebrando Tabu, fez exatamente nada para quebrar o tabu enquanto esteve no palácio do planalto.
O fracasso histórico torna a insistência de Moraes e de seu chefe, Michel Temer, ainda mais revoltante. Eles, assim como seus antecessores, entendem que melhor fica para a mÃdia e para o voto se implementarem a polÃtica de drogas com “vigorâ€, “firmezaâ€Â e “mais prisãoâ€.
São inúmeros estudiosos que identificam o uso da prisão, ou seja, do Direito Penal como proposta de solução para os problemas da humanidade pelos polÃticos. Esse uso do aparato repressivo estatal como plataforma de campanha e de polÃtica de estado recebe o nome do Populismo Penal. E é nesse pesadelo que estamos inseridos hoje.
Não há populismo penal sem um Judiciário repressivo que o sustente. Nesse sentido, estamos lascados. Não é culpa só do Temer, do Moraes, da Dilma, do Lula ou do FHC. Não é culpa apenas dos polÃticos sentados no legislativo que sobem aos plenários para fazerem discursos inflamados contra a bandidagem e por mais polÃcia, mais porrada. A praga somente é possÃvel porque o que eles falam é superado na prática pelo Judiciário, que aprofunda a guerra à s drogas em nÃveis assustadores.
Como se não bastasse – e isso é um mal dos anos mais recentes – esse mesmo Judiciário reacionário, encarcerador e violador da Constituição se vê no centro das lentes midiáticas e do cenário polÃtico atual. O protagonismo dos agentes da justiça catapultaram membros populistas das carreiras que fazem campanha por leis mais encarceradoras, as quais retiram direitos de defesa e mergulham a guerra à s drogas em nÃveis até então desconhecidos.
No campo da recuperação mora outro pequeno detalhe que indica a distância da melhoria As comunidades terapêuticas, ligadas a grupos católicos e evangélicos, que demonizam o usuário ao invés de tratá-lo também rendem grande capital polÃtico e para superá-las seria preciso se indispor com as religiões organizadas. Não parece ser o caso do momento atual.
Há resistência em todos esses setores. A Pastoral Carcerária entra em presÃdios todo santo dia para denunciar as consequências da guerra à s drogas. JuÃzes e Promotores compromissados com a Constituição arriscam suas carreiras em estruturas macartistas que os perseguem por suas opiniões. Movimentos sociais e ativistas polÃticos buscam diálogo para defender o óbvio e fazem isso de forma obstinada. Infelizmente, essas pessoas não estão no espaço decisivo do poder – na verdade, são caçadas por ele.
A noite, como definiu o Juiz de Direito Marcelo Semer, está e continuará longa. Só temos que chorar pela tragédia e continuar lutando para que estejamos vivos quando o dia raiar.