And still I see no changes
Can’t a brother get a little peace?
There’s war on the streets
and the war in the Middle East
Instead of war on poverty
they got a war on drugs
so the police can bother me
[E eu ainda não vejo mudanças
Os irmãos não podem ter um pouco de paz?
Guerra nas ruas e guerra no Oriente Médio
Em vez de guerra contra a pobreza
eles têm a guerra às drogas
pra polícia poder me abordar]
Changes – Tupac
Por Júlio Delmanto*
Em 2011, durante o julgamento no STF que proibiu a proibição da Marcha da Maconha, que até então era acusada de apologia ao crime por defender o fim da criminosa guerra às drogas, o Ibccrim propôs que o dia 21 de maio – data que a Marcha de SP foi atacada pelas costas pela PM – passasse a ser considerado o Dia Nacional da Intolerância. Neste último domingo chuvoso e de Virada Cultural, 21 de maio de 2017, Geraldo Alckmin e João Doria deram sua contribuição pessoal para fortalecer essa ideia já esquecida ao ocuparem militar e violentamente a região do Centro conhecida como Cracolândia.
Reeditando a fracassada Operação Dor e Sofrimento, de Gilberto Kassab, os governos tucanos demonstram sua ausência de capacidade administrativa e de criatividade política ao proporem, pela bilionésima vez, a violência policial como solução para o problema do tráfico e do uso ostensivo de crack na região da Cracolândia. “Insanidade é fazer sempre a mesma coisa e esperar resultados diferentes”, diz a frase atribuída a Albert Einstein: seriam insanos então nossos governantes se achassem que essa vez vai dar mais certo do que nas outras novecentas e noventa e nove milhões novecentos e noventa e nove mil novecentos e noventa e nove vezes, se acharem que dessa vez, depois de cem anos, a fracassada guerra às drogas num passe de mágica vai passar a dar certo. Mas eles não acham. O assunto aqui, infelizmente, não é sobre drogas.
Entre os antiproibicionistas, um argumento é tão consensual e repetido que já é praticamente senso comum pra gente: o de que não é a droga o maior problema da parte que é vista (e estigmatizada) como o todo dos usuários problemáticos ou “dependentes” de drogas nas ruas das grandes cidades. Por mais que a gente goste de drogas, temos que confessar que se fosse isso até que seria melhor porque seria fácil de lidar, mas não é o caso, por um motivo de constatação ainda mais fácil: todo mundo usa drogas. Na Cracolândia, na bolsa de valores, no palácio do jaburu, no projac, na usp, na quebrada, na escola, na igreja , no quartel, no estádio, no parque, na cama na mesa no banho, em todo lugar. Se só algumas pessoas entre as infinitas que usam drogas, lícitas ou ilícitas, moram nas ruas e têm problemas psicológicos e de saúde, é porque não há uma causalidade entre essas duas questões. Se não há causalidade, os verdadeiros problemas dessas pessoas só podem ser outros.
Aí um pouquinho de boa vontade e de falta de preguiça já resolve o diagnóstico, fecha a equação. É só olhar pras pessoas como pessoas, escutar, saber suas origens, desafios e sonhos. Qualquer um que tenha pisado na Cracolândia ao menos uma vez ou lido estudos ou reportagens minimamente sérios sobre o assunto sabe que essas pessoas que alguns chamam de zumbis não têm o mesmo perfil social, e as mesmas oportunidades, de outros usuários que alguns chamam de Senhor, de Doutor, de Vossa Excelência. Não é o uso de drogas que distingue, para o bem ou para o mal, o Aécio Neves do Aécio que frequenta o Centro de Convivência É de Lei: é a cor de pele, a conta no banco, o sobrenome, emprego ou a falta dele, a educação ou a falta dela, a saúde ou a falta dela.
Quando Richard Nixon, o Michel Temer americano dos anos 1970, lançou a guerra às drogas sua intenção declarada era extinguir com plantas de uso milenar como a coca, a maconha e a papoula. Mesmo que esse sonho, ou pesadelo, tivesse se realizado e a coca tivesse desaparecido da face da Terra, como estariam as pessoas que hoje frequentam a Cracolândia? Seriam todas Joãos Doria criadas na base do suéter amarrado no pescoço e do leite com pera, com emprego desde cedo nas empresas da família e podendo pedir aos amigos o cargo político que quisessem? Ou continuariam sendo em sua maioria negros, egressos do sistema prisional, sem acesso à moradia, trabalho, justiça, previdência, educação e saúde? A desaparição da folha de coca ajuda em que no déficit habitacional da cidade, um dos maiores do mundo? Nos milhões de desempregados, na quarta maior população carcerária do mundo, na polícia mais violenta e racista do universo, nas desigualdades de gênero, na homofobia? Se não tivesse pedra pra fumar na Cracolândia ia todo mundo pra casa empreender e dinamizar o capitalismo meritocrático ou as pessoas apenas estariam nas ruas cheirando cola, tomando cachaça, injetando heroína ou outra substância que conseguissem ter acesso?
As intenções declaradas de Alckmin e Doria são as mesmas que Nixon anunciou nos anos 1970, e que foram amplamente desmentidas pela Ciência e pela realidade, essa danada: acabar com o tráfico e o consumo de drogas através da repressão aos elos mais visíveis e fracos da cadeia do comércio. Há muitos equívocos nessa visão autoritária e ultrapassada, mas poderíamos dizer brevemente que: a) nem todo consumo é problemático e precisa ser controlado, apenas o consumo problemático ou abusivo; b) neste caso sabidamente as estratégias de redução de danos são mais efetivas e bem sucedidas – uma vez que são estratégias um pouco mais complexas do que soltar animais fardados pra atirarem nas pessoas; c) se sua maior fonte de lucro e influência é a proibição, o tráfico só pode ter seu poder minado com a legalização das drogas; d) a polícia não pode ser escalada para resolver o problema uma vez que é parte direta dele, já que está envolvida de cima a baixo no comércio de drogas.
Só os Estados Unidos gastaram cerca de UM TRILHÃO DE DÓLARES com a guerra às drogas num período de 40 anos. Não adiantou nada pra além de gerar crime organizado, lavagem de dinheiro, violência e encarceramento. Se estivéssemos falando de drogas, é evidente que a abordagem mais realista e efetiva é a da redução de danos. Redução de danos para tratar do consumo abusivo, estimulando autocuidado, controles sociais e autonomia – e, igualmente importante, redução de danos para as políticas proibicionistas, através da legalização de todas as drogas, afinal se mata e se morre muito mais pela proibição do que por qualquer uso.
Doria e Alckmin não têm um trilhão de dólares à sua disposição, seus recursos são mais escassos. Assim como foram muito escassas as migalhas investidas por Haddad no Programa De Braços Abertos, uma mistura de discurso sensato com a prática das políticas eleitoreiras e precárias “para pobre”. Aí chegam os “gestores” tucanos e, diante da escassez de recursos, não só torram uma fortuna em impostos com uma ação policial espalhafatosa (estima-se que cada bomba de gás lacrimogêneo custe 800 reais, é praticamente um salário mínimo), como rasgam os milhões e milhões que já foram investidos em equipamentos na região, em que até um hospital foi construído (cercado de suspeitas de corrupção, óbvio). Por meses sucatearam o programa anterior, que já era bem sucateadinho por seus próprios criadores, e fizeram vistas grossas ao crescente armamento do tráfico para que se justificasse uma operação violenta, para que a necessidade de uma ação estatal ali fosse vista como urgente.
Fazer algo era de fato urgente, mas não apenas pelo controle armado do território pelo tráfico, pois isso não acontece só lá, pois a diferenciação entre usuário e traficante não é tão simples, pois estão lá apenas os elos mais fracos e substituíveis da cadeia de venda de crack. Era urgente porque cada pessoa que não tem onde morar, onde dormir, onde guardar suas coisas, deveria ser tratada com a maior urgência do mundo.
Mas a urgência de Alckmin e, principalmente Doria, é outra. É a mesma de todo político, é poder, é eleição, é 2018. Se até antes da eleição do ano passado o atual prefeito aparecia com índices baixíssimos nas pesquisas, seu dinheiro, seus contatos, seu talento político e midiático, sua ausência de trajetória na política e a Operação Lava Jato o levaram para o topo de uma forma surpreendente. De 3% nas pesquisas Doria passou em um ano a favorito da corrida presidencial, principalmente por todos os outros concorrentes terem se envolvido nos escândalos de corrupção que o prefeito ainda não tinha tido tempo de se envolver. Passou a calcular cada ação, cada entrevista, cada pronunciamento dentro desse objetivo de se cacifar, dentro e fora do PSDB, como alternativa presidencial para 2018. Num momento em que política na imprensa é sinônimo de notícia ruim, faz o possível e o impossível para aparecer em “agendas positivas”, como por exemplo “limpar a cracolândia” domingo cedo todo penteadinho, sem falar palavrão e a tempo de pegar a missa das dez.
Mais do que especulação imobiliária, autoritarismo, racismo, interesses econômicos nas políticas de internação e até sadismo – outros fatores decisivos da intervenção tucana, evidentemente “, a pressa e a falta de estratégia dessa operação parecem baseadas no projeto de poder imediatista do prefeito João Doria, que age como se sua chance fosse “agora ou nunca”. Se Haddad implementou o Braços Abertos mais como “marca” do que como realidade, investindo e fazendo muito pouco na busca de um discurso “humanizado” e “diferentão” pra região, o prefeito tucano mantém a ideia clássica de muito marketing e nenhum resultado, mas em outra chave, mais explicitamente repressiva (Haddad cansou de pedir polícia na Cracolândia). Sua estratégia é tão complexa e profunda quanto são, por exemplo, as ações de dispersão de multidão empreendidas pela PM: jogam bombas e bombas e em quem pegar pegou, quem conseguir correr conseguiu, quem morrer morreu. A ideia é mostrar ação, não importa se seus efeitos são os melhores ou se há efeitos colaterais.
Se minha hipótese está correta e a questão aqui não é sobre drogas, muito menos sobre seu combate, não vale nem a pena contestar que a operação policial do último domingo tenha apreendido pouquíssimas armas e menos crack do que a quantidade que era vendida em apenas um dia na região, segundo dados que o próprio DENARC tinha divulgado antes. Por outro lado, me deixa muito inquieto a outra reflexão que deriva daí: se o problema da Cracolândia não são as drogas, não é a redução de danos que irá resolvê-lo, mesmo se pensarmos na redução de danos de forma ampla e incluirmos o fim da proibição como parte desse paradigma.
Claro que precisamos de atenção e cuidado em marcos dignos e antimanicomiais para essas, e todas, as pessoas, e claro que a maior redução de danos atual é parar imediatamente com a violência policial: mas se achamos que não foi (só) a pedra que os levou pra rua, não será (só) a redução de danos que os tirará. O Estado também não, pelo contrário, se dá a mão é só pra empurrar. Como fazemos então? Como coletivamente caminhar junto com os frequentadores da Cracolândia, e com as pessoas em situação de rua de forma geral, para construir estratégias de luta e, principalmente, de vida que não dependam de um Estado que quer exterminá-los? Autonomia é viver de acordo com suas próprias regras, e ela só é pensável se é coletiva. Se o Estado ataca a autonomia de uma pessoa, está atacando também nossa possibilidade coletiva de viver autonomamente. Não podemos deixar. Nem ficar só reagindo, denunciando e demandando pra sempre: como disse Tupac na música que abre o texto, precisamos mudar o jeito que vivemos, o jeito que comemos, o jeito que tratamos uns aos outros. “Você sabe que o caminho antigo não funcionou, então cabe a nós fazer o que tiver que ser feito pra sobreviver”.
* Júlio Delmanto é integrante do DAR e doutorando em História Social.
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