Coluna da Isa Bentes*
Em setembro, saiu a notícia de que um dos integrantes da equipe do seriado Narcos fora assassinado em território mexicano após iniciar a busca de um local para as filmagens da quarta temporada, na qual o tema central serão as organizações de tráfico de drogas do México. Isso me fez lembrar de um livro que li sobre jornalismo investigativo. No momento de tratar sobre tráfico de drogas e as relações que se estabelecem a partir disto, resultam em obras como Zero Zero Zero, de Roberto Saviano, jornalista italiano, que é autor também de Gomorra: a história real de um jornalista infiltrado na violenta máfia napolitana [2008], que retrata o expansionismo dos clãs do território napolitano e casertano e resultou numa vida de escolta permanente, de mudanças de endereços residenciais, sem frequentar lugares públicos devido às ameaças, e até mesmo tentativas de assassinato a ele prometida pelas máfias ao expor o íntimo das relações comerciais operadas por estes grupos.
Em Zero Zero Zero, título que leva esse nome por representar, na gramática das relações comerciais, a cocaína de melhor qualidade, Saviano destrincha particularidades, críticas e realidades de um contexto que não é acessível, expondo nomes de representantes políticos, líderes de máfias, desertores, dentre outras figuras importantes no imbricado de relações estabelecidas nesse meio social. De início, desvenda as práticas corriqueiras na sociedade acerca do uso da cocaína, e isso mostra uma realidade que não é percebida facilmente: o ato do consumo de cocaína e seus usuários. Por ser um psicoativo que requer poucos equipamentos técnicos e seu consumo ser realizado de maneira rápida e em lugares mais privativos, o uso não exala fumaça ou possui algum cheiro específico de rápida propagação no ar, a prática destes indivíduos não é imediatamente percebidas, como acontece com o uso de outras substâncias como álcool e maconha. Ele expõe, portanto, as falhas do julgamento moral que são destinadas aos usuários e usuárias de substâncias psicoativas tornadas ilegais, além de identificar que aquele sujeito, denominado por outsider, representa 18,3 milhões de usuários que demandam anualmente 943 toneladas de cocaína pura, movimentando um mercado de 88 bilhões de dólares.
Expondo a mendacidade destas relações, o autor segue descrevendo suas sensações e comportamentos ao realizar entrevistas com um policial apontando para os entraves e limites de um diálogo que trata de códigos de conduta dentro da máfia calabresa e regras de convivência que são baseadas em códigos de honra, de respeito, de obediência, hierarquia e punição. Saviano nos revela que, da mesma forma que o ordenamento social orienta os integrantes de uma determinada organização internamente, ele também compreende as relações para fora das organizações, entre os agentes de mercado, cujas relações são estabelecidas com finalidades de regulamentação das normas e condutas, e que se funda igualmente na concepção de honra, respeito, obediência, hierarquia e punição. A partir de então, Saviano evidencia com riqueza de detalhes o elemento definidor da perspectiva da obra: uma análise centrada nas relações de conflitos expressas a partir das quebras dos códigos que regem as normas e condutas. Ou seja, o autor descreve a construção histórica destes enfrentamentos, e como eles são refletidos para dentro das organizações e das relações estabelecidas entre seus pares.
A chave da compreensão destas relações nos diz, através da construção histórica, que os pronomes de tratamento que são estabelecidos culturalmente fazem referência a papéis sociais desempenhados dentro de círculos familiares. O padrinho, o pai, o chefe da família, atribuições semânticas que expressam de forma latente as estruturas que fundamentam o sistema patriarcal, compreendendo como um sistema organizado de práticas sociais em que a figura do homem é central, cuja função social atribuída representa figuras de autoridade e superioridade. Por outro lado, nos anos 1990, principalmente na América Latina, as figuras das mulheres como chefes de organização começam a desconstruir essa perspectiva patriarcal e deslocá-la para uma relação menos desigual de gênero, resultando por vezes em adjetivos que caracterizam aquela mulher com superlativos atribuídos a uma figura desumana e impiedosa, que pratica atos de crueldade com requintes de tortura. Nesse sentido, pode-se pensar que tais mulheres que ganharam tal status o construíram como uma necessidade de sobrevivência num mercado que tem as raízes fundamentadas no patriarcado. Ainda sobre essa dimensão de gênero, existem literaturas escritas para analisar o papel das mulheres dentro das máfias, e que esse livro também expõe, que é a instrumentalização do sexo feminino para desnortear investigações, despistar suspeitas, assim como práticas de objetificação do corpo e usufruto público do mesmo. Essa permissividade foi construída no imaginário social em que à mulher lhe é atribuída a imagem de incapaz de administrar os negócios, desqualificando-as e, portanto, acima de qualquer suspeita.
Outra expressão das relações do tráfico de drogas é posta a partir da expressão da guerra pelo petróleo branco, partindo de uma análise financeira do sistema do mercado ilícito de cocaína, as movimentações financeiras advindas desse comércio, e as relações de mercado em contexto de conflitos e quebras de normas e condutas, em particular no México. A expressão “petróleo branco”, trazida no livro, faz referência à magnitude do tráfico de cocaína, associando diretamente aos lucros e poderio advindos do mercado petrolífero. Os poços de petróleo branco são, portanto, regiões estratégicas de produção da cocaína, com forte presença de grupos organizados que ordenam tais mercados, com destaque para Sinaloa e os barões que se caracterizam por um forte apelo junto à população local.
Uma das expressões do conflito pelo petróleo branco é a multiplicação de organizações que competem entre si, num ciclo permanente de quebras de normas, em que os resultados são altas cifras de morte, estabelecendo um cenário com altos índices de violência consequente da disputa existente em um comércio em que a mercadoria principal são substâncias tornadas ilícitas. Outras instituições vão sendo apresentadas como componentes centrais para operacionalizar este mercado, que diz respeito às práticas de corrupção policial, financiamento privado de campanhas políticas, empresas fraudulentas, tráfico de armas, prostituição, e o papel mais importante que são aqueles destinado aos bancos para lavagem de dinheiro e a regularização em transações internacionais.
Além desta estrutura mais direta, as organizações também gerenciam territórios urbanos afim de explorar economicamente tais espaços que são destinados às indústrias e mercados lícitos. Esse gerenciamento é expresso a partir dos monopólios das máfias em que, em caso de negativa para fins de negociações, ao tentar se instalar em determinada região da cidade, estas são submetidas à ameaças e ações de destruição das fábricas. Com isso, as forças de mercado presentes, como aconteceu na Rússia, eram compulsoriamente reguladas pela máfia que mantêm relações simbióticas com o Estado, principalmente após o fim da União Soviética. Saviano expõe, portanto, histórias e trajetórias particulares de como cada organização foi responsável pelo desenvolvimento de suas economias locais que, no contexto global, integram uma rede de atuações e movimentações financeiras que não se apresentam de forma clara, mas que opera em todos os segmentos da sociedade. A financeirização da economia que caracteriza o atual momento do capitalismo global tem favorecido enormemente o modelo de mercado das substâncias psicoativas tornadas ilícitas. Isto porque ao identificar e organizar os agentes financeiros que operam no mercado, este possibilita a existência de certas formas de finanças que são peculiares de cada segmento que o compõe. No caso do tráfico de drogas, as relações de mercado possibilitam a existência de certos mecanismos financeiros que garantem a possibilidade de lucro permanente, sem riscos, e que tem capacidade de salvar da bancarrota os negócios promovidos pelo capital especulativo nas crises cíclicas do capitalismo.
Nesse sentido, as transformações de ordem econômica, associada à circulação de bens, serviços e pessoas, possibilita a emergência de novas dinâmicas que possibilitam a existência de um mercado que tem seus pés fincados da ilicitude, mas que estabelece uma relação tênue com a legalidade das relações estabelecidas através das leis de mercado. Dessa forma, não há como separar, portanto, o capital que circula de forma ilegal ou legalmente, uma vez que as operacionalidades de mercado como oferta e demanda, comportamento dos consumidores, formação de preços, têm efeitos direto nas dinâmicas de acumulação. Isso mostra que o capital extraído desse tipo de mercado é submetido a mecanismos próprios do capitalismo como a lavagem de dinheiro em paraísos fiscais, fuga de capitais, evasão de impostos, dentre outros elementos que são viabilizados a partir da existência da ilicitude de determinados empreendimentos.
Vale frisar a importância do papel dos bancos na viabilidade dessas ações. Com o aprofundamento das dinâmicas neoliberais, aproveitaram da desregulamentação do sistema econômico para ampliar seu raio de atuação, como foi o caso, por exemplo, do banco ING, que foi multado em mais de 619 milhões de dólares por adulterar registros e movimentar mais de 2 bilhões de dólares para instituições que mantem relações com o Irã; o caso também do American Express Bank Internacional, que lavou mais de 55 milhões de dólares em lucros advindos do tráficos de drogas; assim como o ABN Amaro Holdings, Barclay”ºs, Credit Suisse, Lloyds, Standard Charteres, Union Bank of California, Wachovia, que ao fim conseguiram estabelecer acordos com o Departamento de Justiça estadunidense e se esquivar das punições estabelecidas como sanções nestes casos.
Uma das finalidades do capital proveniente deste mercado é a utilização em construções e equipamentos urbanos capazes de auxiliar no funcionamento da rede de relações promovidas pelo tráfico de drogas. Leia-se, portanto, a construção de casas de prostituição, hotéis, cassinos, bancos privados, etc. Saviano nos revela igualmente os agentes e equipamentos que fazem esse mercado girar, como as estruturas aeroportuárias e marinhas, o poderio bélico, equipamentos hiper elaborados de comunicação, trabalhadores e trabalhadoras dos mais diversos segmentos, e a população pobre como refém desse sistema para pagar as consequências geradas pela guerra às drogas.
As operações jurídicas e policiais, como resposta a esse mercado ilegal, respondem com gastos exorbitantes de combate ao tráfico de drogas, elevando da letalidade desta guerra, e usufrui da população empobrecida pelo capital para destinar as práticas penalógicas a partir da implementação de leis que condenam tal população a pagar a dívida social gerada pelo capitalismo. O resultado de tais operações, ao contrário do que aponta o discurso de combate às drogas, garante um elevado dano à saúde pública e ao bem-estar da população em geral a partir de extermínios de determinados agrupamentos sociais, fundamentalmente àqueles que são afetados negativamente pela democracia do capital em processos de empobrecimento e ampliação dos abismos sociais.
Saviano encerra sua obra apontando que o mercado da cocaína é, indubitavelmente, o mais rentável de toda economia mundial, expondo claramente que as relações econômicas estabelecidas entre o mercado ilegal e legal não possuem uma linha divisória que separe ou desassocie tais economias. Estas não estão apenas em permanente negociação, como estabelecem relações simbióticas que tornam-se capaz de garantir a salvaguarda dos negócios e dos lucros de bancos, integrando o mercado de capitais [i]legais como um protagonista fulcral na segurança do mercado em cenário das crises cíclicas do capitalismo.
*Isabela Bentes é socióloga pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Mestra em Sociologia pela Universidade de Brasília e integrante do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre psicoativos. E-mail: isa.bentes@gmail.com