por Júlio Delmanto, do Coletivo DAR
Já exibido em alguns festivais e prestes a estrear nos cinemas nacionais, o filme Legalize já, dirigido por Johnny Araújo e Gustavo Bonafé e vencedor do prêmio do público na última Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, apresenta uma personagem muito importante dessa história apenas como coadjuvante. Não que não se fume maconha em Legalize já, ela tá lá diversas vezes, mas fazendo só uma pontinha.
Assim como muitos filmes e livros baseados em histórias reais de gente famosa, o filme opta por focar na história do Planet Hemp antes da fama. Mais especificamente, no encontro e na relação entre seus fundadores Marcelo (ainda não D2) e Luis Antônio, o Skunk, que morreria em decorrência do HIV seis meses antes da banda lançar seu primeiro disco, Usuário, clássicaço de 1995. Na premiação da Mostra e em entrevistas os diretores enfatizaram que o filme não é sobre maconha, e até os personagens de D2 e Skunk têm uma conversa falando sobre isso.
D2 é interpretado por Renato Goés de um jeito marrento mas meio caladão que às vezes parece o Mano Brown, já Ícaro Silva é mais carismático na interpretação do Skunk. Na resenha elogiosa que fez do filme, o Mathias Maxx fala rapidinho de outro aspecto importante ignorado pelo filme, e que, segundo ele, “é um tabu até hoje e na época”, a sexualidade do Skunk. Mais uma opção questionável de Legalize já, por mais que possivelmente tenha sido também uma opção do próprio Luis Antônio na época – até porque o filme mostra como ele sempre escondeu dos amigos que era soropositivo, e mesmo assim o tema é abordado.
Mas voltando à verdinha, tá certo que o D2 participou da elaboração do argumento do filme, que é portanto um pouco a versão dele – hoje em dia – pra esses fatos, a versão mais pai-de-família-batalhador que ele tem gostado de apresentar (mesmo que nem sempre) nos últimos anos. Tá certo que o sucesso do Planet tem muito a ver com críticas fudidas que vão pra além da questão das drogas, falando da polícia, do racismo, do trabalho, da mídia e da rebeldia, e também com muitas inovações e qualidades no lado musical. Firmeza. Mas porra: o nome da banda é Planeta Maconha, o filme chama LEGALIZE JÁ, o primeiro disco chama USUÁRIO (cuja faixa número 1 é “Não compre, plante”), o vocalista e letrista principal é D2, o outro personagem principal do filme é SKUNK e eles não têm um diálogozinho sobre a planta, sobre a proibição, a onda, nada? Nem escolhendo o nome da banda? Não pensam nem por um segundo que isso moldaria a forma como seriam vistos e tratados pela mídia?
Apenas quando os personagens de Marcelo e Skunk encontram os do baixista figura Formigão e do guitarrista Rafael Crespo é que Fomirgão comenta algo sobre o tema, tipo “mas tem maconha pra caralho nas letras né?”, mas risadas e já corta, bola pra frente. Outra hora mostra rapidinho que o Marcelo cultivava – outdoor. O filme tem boas cenas dos dois começando a compor, do ambiente musical da época e pá, uma boa fotografia e também uma reconstituição razoável de algumas referências, seja em clipes, pôsteres, camisetas ou diálogos. Mas sua narrativa e estrutura é careta e previsível, pique Globo Filmes, tem diálogos (“vamo formar uma banda de rap rock and roll psicodelia hardcore e ragga!”) e cenas (D2 encostado nos arcos da Lapa escrevendo) bem forçados e deixa muito a desejar no quesito politização, que era um dos fortes da banda, principalmente em relação à legalização da maconha.
Não importa se o D2 atual e os diretores, roteiristas e produtores do filme não querem passar essa imagem, querem fazer um filme (só) de amor como eles mesmos disseram. Em entrevista publicada em 1995, por exemplo, D2 fala pra Folha de S.Paulo que morou no Andaraí até os 14 anos e lá fez pequenos trabalhos pro tráfico – o texto inicial diz que Legalize Já é a “música-chave” do disco Usuário. Foi o primeiro hit, assim que a banda ganhou fama, falando sobre isso, não tem como (nem por que) desvencilhar.
Outra matéria de 1995 da Folha, diz que “o Planet Hemp (Planeta da Maconha, em inglês) defende é que o consumidor de maconha possa usá-la sem ser preso, mas sob certas regras, a exemplo do que acontece com o álcool, que não pode ser vendido a menores de idade”. “A gente quer a legalização. O governo deveria tomar conta não só da maconha, mas também do álcool. Ele deveria plantar, produzir e fazer propaganda esclarecedora na mídia”, diz D2, que tinha então 27 anos e segundo a matéria fuma desde os 12. “Para os cinco integrantes da banda, que lança o disco amanhã em São Paulo com show no Blen-Blen Club, a legalização deve ser debatida pela sociedade. Para o vocalista B Negão, a maioria confunde legalizar com liberar. “A ignorância é a coisa mais terrível. As pessoas têm que se informar e não ficar com a mente embotada. Concordo com aquela frase célebre: maconha não vicia, o que vicia é a ignorância.”
Como demonstra essa outra reportagem, também de 1995, o lançamento de Usuário foi precedido de um grande “hype” na imprensa especializada em música na época, que publicou matérias elogiosas sobre o disco antes dele sair. A gravadora Sony chegou a distribuir latinhas pros jornalistas, em referência ao Verão da Lata, com conteúdo de divulgação. A posição política gerou não só repressão e censura, mas também marketing. “Tratamos dessa coisa sem demagogia, por ideologia. Nós acreditamos nisso. O que falamos não é baboseira, não vi na novela das oito. É real, a parada acontece mesmo. Quando escrevo letras, procuro sempre incomodar as pessoas que me incomodaram a vida toda, que você vê vendendo arma, matando neguinho atrás da kombi, se explicando porque roubou 600 milhões não sei onde. O Planet foi feito para incomodar, da maneira que for”, disse D2 em entrevista de 1997.
E incomodou muito, se tornando muito provavelmente a principal voz a ecoar e debater no Brasil a legalização da maconha nos anos 1990. Como os exemplos acima mostram, sempre foi sobre maconha sim. Se o filme Legalize já não queria contar essa parte da história, podia ter começado mudando de nome – vi em algum lugar que o nome original era Anjos da Lapa, algo assim. Mesmo assim, continuaria um desperdício por não tentar pelo menos conciliar os dramas pessoais com o lado político, por mais que todas as homenagens ao Skunk sejam sempre válidas. “Não tá ligado na missão? Foda-se”.