do Growroom.
Grupos de pacientes e famílias atrás damaconhapara fins medicinais têm se mobilizado cada vez mais no Brasil, levando a uma série de mudanças nas regras que envolvem a erva em diferentes agências. Mas ainda é muito interessante para a indústria farmacêutica manter a proibição da cannabis.
A Anvisa facilitou a importação de produtos à base de cannabis, reclassificou o CBD para que pudesse ser prescrito por médicos e aprovou o registro do Mevatyl (Sativex); o CFM (Conselho Federal de Medicina) apoiou o uso compassivo do CBD. Parece um grande avanço para aqueles que defendem políticas de drogas mais justas e inclusivas, mas a narrativa que glorifica o CBD e insiste em demonizar a maconha beneficia somente um grupo pequeno de pessoas: as que lucram com a ilegalidade da cannabis.
Até 2014, a reputação da cannabis, conforme pintada pela mídia tradicional, era predominantemente negativa. O artigo “A Verdade Sobre a Maconha”, de Denis Russo Burgierman, publicado em 2002 pela Super Interessante, destoou do restante dos jornalistas, que demonizavam a erva em uníssono. Apesar de uma longa lista de “hate mail“, Burgierman demonstrou que havia potencial medicinal na maconha e que o público brasileiro merecia saber. O assunto, contudo, ficou relativamente intacto nos anos que se seguiram.
Finalmente, em 2014, a Super Interessante retomou o assunto em uma edição especial da revista:“A Revolução da Maconha”. Uma matéria de Tarso Araújo expôs relatos de usuários medicinais com foto e nome completo, entre eles a Any Fischer, criança portadora da rara síndrome de CDKL5, uma forma de epilepsia de difícil controle. A garotinha e a mãe, Katiele Fischer, começaram a aparecer por toda a mídia; mas eu volto a falar sobre elas mais adiante.
Por volta da mesma época, odocumentário “Weed”, do Dr. Sanjay Gupta produzido pela CNN, foi legendado em português e postado no Youtube, onde milhares de brasileiros tiveram acesso. Os casos de crianças com epilepsia sendo tratadas com extratos de cannabis emocionou o Brasil e se tornou um fenômeno. Virtualmente TODOS os veículos passaram a publicar matérias sobre o uso medicinal da erva. A narrativa, no entanto, foi mudando.
Em vez do potencial medicinal da maconha como um todo receber sua devida atenção, o CBD se tornou, de repente, o herói do momento. Os termos comumente utilizados não variavam muito: “derivado da maconha”, “substância proveniente da maconha”, “uma das mais de 400 substâncias da maconha”. A cannabis voltou a ser um vilão, mas o CBD, esse sim é bacana.
A mais clara distinção foi feita pela revista Veja ainda em 2014, na matéria de Adriana Dias Lopes, “O canabidiol não é droga”, que diz: “O composto da maconha deve ser aprovado no Brasil contra a epilepsia e a esquizofrenia. Mas atenção: é a substância inofensiva da cannabis, sem relação com os efeitos tóxicos da planta”.
O problema é que todas essas crianças não estavam consumindo óleo de CBD, elas estavam consumindo óleo de maconha, contendo CBD e mais uma série de outras substâncias e canabinoides, incluindo o THC.
Com toda essa narrativa preparou-se o terreno para a indústria entrar em cena. Apesar das histórias de luta das famílias que usaram a cannabis para tratar crianças com epilepsia refratária,não há comprovação científica de que a cannabis ou o CBD sejam eficazes no tratamento da doença. Para que um produto seja aprovado e vendido como medicamento, é preciso que ele tenha passado por testes clínicos que comprovem sua segurança e eficácia. Esses testes custam caro e a indústria farmacêutica faz pesados investimentos neles antes de receber uma licença de marketing para comercializar medicamentos.
Para que esse investimento valha a pena, é preciso que o produto seja patenteável, ou seja, que a empresa tenha exclusividade na venda dele por pelo menos um período de tempo. No caso de medicamentos à base de cannabis, o que acontece é que empresas ficam com um pé atrás para investir em estudos e depois ter que lidar com a competição de extratos caseiros, com erva plantada em casa. Há diferentes estratégias para contornar isso, todas contando com a proibição:
A seguir, serão explicadas cada uma dessas estratégias, com exemplos de pessoas ou empresas que as utilizam.
Essa parece ser a estratégia doDr. José Alexandre Crippae o grupo de cientistas da USP de Ribeirão Preto. Crippa tempatente de CBD sintéticoe está trabalhando em estudos usando o canabinoide isolado em humanos. Crippa despreza o óleo artesanal eacredita no uso do CBD isoladopara tratar a epilepsia e outras enfermidades. Ele firmou parceria com a indústria farmacêutica e afirma ser necessário haver um medicamento patenteável para que os investimentos em testes clínicos sejam realizados pelo setor privado.
Crippa compreende que o valor do medicamento acabaria sendo alto e, portanto, acredita que os pais das crianças teriam que pressionar o governo para que haja um subsídio. Fica assim: você paga imposto, o governo paga a indústria farmacêutica bilionária, algumas pessoas ficam ricas, e algumas crianças recebem o remédio.
Algumas crianças porque o custo para fornecer esses medicamentos para TODOS os pacientes com epilepsia ultrapassaria os 100 trilhões de reais* – considerando que o PIB do Brasil é de cerca de 2 trilhões, eu diria que isso não vai acontecer.
Até o momento, as crianças têm utilizado extratos de cannabis não purificados e portanto, não há indicação se o CBD isolado é melhor ou pior. Alguns pais, como Jason David, da Califórnia, afirmam que o teor de THC tem que ser superior a 1% para que se controle as crises de seus filhos. Nesses casos, é improvável que o CBD isolado seja eficaz. O CBD e o THC, assim como outros canabinoides, interagem entre si, podendo favorecer seus efeitos medicinais conforme a quantidade de cada um no extrato. O CBD também contrapõe os efeitos psicoativos do THC, diminuindo efeitos colaterais do mesmo.
O THC sintético isolado, vendido como Marinol nos Estados Unidos, é permitido em diversos países como um antiemético (contra o enjoo) para pacientes com câncer.A maioria das pesquisas indica, contudo, que os pacientes preferem a ervain natura, pois ela apresenta menos efeitos colaterais.
Similarmente, umestudo comparando a eficácia do CBD isolado em comparação a uma planta rica em CBD para efeito anti-inflamatórioconstatou que a erva é superior nesse sentido.
Estudar o CBD isolado só faz sentido do ponto de vista financeiro, portanto; exclui uma série de pacientes e depende da proibição da ervain natura. Sabendo disso, um dos critérios para selecionar crianças (ainda em 2014) para as pesquisas, que seriam realizadas na USP de Ribeirão Preto, era de que os pais não poderiam estar envolvidos com ativismo, Marcha da Maconha, defender o cultivo ou a legalização da maconha para fins recreativos, segundo a psicóloga Nívia Colin. Coordenadora do grupo “Mães da Epilepsia”, Colin organizou um grupo de mães que gostariam que seus filhos participassem do estudo. Cidinha Carvalho, contudo, teve a filha, Clárian, excluída da pesquisa**.
“Cidinha, infelizmente, você não poderá participar com a Clárian”, explicou Colin, “foi a condição que ele [Crippa] impôs”. Ela ainda explica: “se for continuar com a Marcha da Maconha, o governo não pode dar $$$ pois eles estarão contra a lei; (“) ela está nas fotos, divulgada no Face, etc. A faculdade não pode ir contra quem paga o estudo porque é a USP de Ribeirão Preto; foi a primeira condição que ele me impôs para dar início à pesquisa, de que a mãe não pode expor a imagem da criança e nem ser a favor do uso recreacional; mas falou que eu só poderia levar mães que estivessem nesse perfil”.
E quem paga o estudo?Segundo o próprio Crippa, a indústria farmacêutica. Em entrevista por telefone, em 2015, Crippa explicou que “estamos muito próximos de ter um sintético no Brasil; (“) como não tem patente, o canabidiol não é de interesse da indústria farmacêutica”. Ele também explicou que uma parceria com a indústria farmacêutica seria necessária para desenvolver os testes, já que nem a USP de Ribeirão Preto poderia arcar com os custos.
Cidinha acabou tendo acesso ao óleo através de uma rede clandestina de cultivadores, gratuitamente, e aprendeu, também com cultivadores, a plantar a cannabis em casa e a produzir seu próprio extrato.Hoje suas plantas estão protegidas pela justiça.
A Entourage Phytolab, startup do advogado paulistano Caio Santos Abreu, iniciou uma parceria com a Unicamppara realizar pesquisas e desenvolver um medicamento à base de cannabis. Segundoreportagem da Veja São Paulo, a empresa já importou 10 kg de maconha do Canadá, no valor de 200 mil reais, para realizar os testes: “Esse material será usado para desenvolver o primeiro medicamento com o extrato da erva no país – no caso, um fitoterápico para aliviar os sintomas de epilepsia refratária, a forma mais agressiva da doença.”
Caio afirma que “nossa intenção é iniciar os testes em seres humanos no segundo semestre (de 2017). Queremos pôr o produto à venda em dois anos.”
Ainda segundo a reportagem, os extratos importados de cannabis custam entre 1300 a 1600 reais, podendo ser até mais caros. Mas o medicamento da Entourage Phytolab promete ser até 30% mais barato – descontão, hein!
Um medicamento que custará cerca de mil reais teria a difícil competição de extratos artesanais feitos em casa com custo quase zero. Está claro que esse investimento todo é uma aposta na proibição.
O Mevatyl, que chegará em breve no mercado brasileiro, é outro exemplo dessa estratégia. O spray oral composto de THC e CBD é produzido pela GW Pharmaceuticals e vendido no exterior como Sativex. O medicamento é indicado para controlar espasmos causados pela esclerose múltipla. Ainda não há previsão do quanto o Mevatyl custará no Brasil, mas no exterior é vendido a cerca de 300 dólares o frasco – ou seja, também algo perto de mil reais.
O preço desses medicamentos acaba sendo muito caro para o bolso da grande maioria dos brasileiros e considerando que não só os ricos ficam doentes, milhares de pacientes acabariam tendo que receber esses remédios do governo. Considerando o número de pacientes com epilepsia e esclerose múltipla no Brasil, o governo não teria como arcar com esse custo – eu já mencionei que plantar sai praticamente de graça?
Se você já ouviu falar de empresas como Dixie, Medical Marijuana Inc., KannaWay, KannaVest, KannaLife, etc, deve ter pensado: nossa! Há muitas empresas vendendo óleo de cânhamo.Na verdade, todas essas empresas pertencem ao mesmo grupo de pessoas, entre as quais alguns traficantes e pessoas sendo investigadas por diferentes tipos de fraudes.
Essas empresas compram ações umas das outras para valorizar seu nome no mercado e atrair investidores. Elas também funcionam em um esquema pirâmide, onde seu maior mercado consumidor provém de seus colaboradores internos. Apesar das práticas ilegais e uma série de outras preocupações levantadas por clientes e investigadores independentes, a Medical Marijuana Inc. e suas “parceiras” chegaram ao Brasil com o nome de HempMeds Brasil.
O produto da HempMeds, o RSHO (Real Scientific Hemp Oil) foi o que mais recebeu marketing espontâneo, aparecendo em inúmeras reportagens, vídeos no Youtube e documentários. Se você lê qualquer coisa ou assiste TV, talvez já tenha visto aimagem de Katiele Fischersegurando a seringa do produto. Todo esse marketing não acontece por acaso.
No relatório intitulado “Hemp Oil Hustlers”, realizado pelos pesquisadores do grupoProject CBD, é explicado como HempMeds e suas parceiras vendem e fazem propaganda de um medicamento, sem dizer que é um medicamento. É ilegal vender um produto e afirmar que é medicinal, quando não há nenhum estudo comprovando sua segurança e eficácia. Mas, por que gastar milhões em pesquisa quando se pode deixar outra pessoa fazer tais afirmações por você? Enquanto o RSHO é vendido como um suplemento alimentar, ele é conhecido como um remédio, sem que a empresa tenha dito isso.
O óleo é caro e, dependendo da concentração, custa entre $89 e $259 dólares. Então muitas famílias aceitam receber o óleo de graça, em troca de postar vídeos na internet falando dos benefícios que o produto trouxe a seus filhos. Quando a imprensa entrevista a família, eles inevitavelmente mostram o frasquinho ou seringa de RSHO.
A Hempmeds também cita estudos independentes sobre os benefícios do CBD no tratamento de doenças, deixando que outras pessoas arquem com os custos de pesquisa, mas sugerindo – tomando cuidado para usar a palavra CBD, em vez do nome de RSHO – que seu produto é eficaz no tratamento de uma série de enfermidades.
Ainda assim, no Brasil, eles são bem menos cuidadosos do que nos Estados Unidos. Em seu site eles afirmam que seu produto não causa qualquer efeito colateral, o que não pode ser afirmado sem um estudo clínico que o comprove; e em sua página oficial no Facebook, a HempMeds ainda afirma produzir e distribuir “medicamentos à base de CBD”, apesar de não ter licença de marketing para ser um medicamento e não ser a base de CBD, mas de cânhamo – e conter CBD, além de uma série de outras substâncias.
E tudo isso continua acontecendo apesar de a justiça brasileira ter determinado, no ano passado, que a HempMeds está proibida de fazer propaganda de seu produto, até mesmo em seu site. A decisão foi ignorada sem qualquer cerimônia.
Apesar de esse não ser o foco desse artigo, não podemos deixar de lembrar outros típicos exemplos de pessoas que lucram com a proibição da maconha e outras drogas:
A lista pode ficar ainda mais longa, mas já deu para entender. O fato é que, com tanto dinheiro circulando por conta da proibição, mudanças na política de drogas acabam se tornando mais difíceis. Apesar de uma tendência mundial para a legalização da maconha, diversos grupos apostam em atrasar o máximo possível uma política mais inclusiva, para lucrar desse processo de transição. Enquanto isso, milhares de pacientes ficam sem acesso à cannabis e as pesquisas em desenvolvimento não estão focadas nas variedades da planta, que pode e está sendo plantada em casa por pacientes, mas em produtos a serem vendidos a preços exorbitantes.
Canabinoides: conheça os principais componentes medicinais da maconha
Famílias como a de Cidinha Carvalho foram contra a corrente e acabaram tendo sua produção caseira protegida, tendo acesso gratuito aos extratos que têm ajudado seus filhos. Se essa tendência continuar, as pessoas que investiram no proibicionismo têm muito a perder.
*O cálculo foi feito com base no valorrevelado por grupos de famílias, que afirmam custar até 1 milhão de reais por ano para 10 crianças importarem o óleo de cannabis. Estima-se que há cerca de 2 milhões de pacientes com epilepsia no Brasil, o que geraria um custo de 200 trilhões de reais por ano. Considerando que os valores podem ser exagerados e que o custo poderia ser barateado por pressão do governo, e também que parte dos pacientes poderiam optar por não usar esse tratamento, eu cortei esse valor pela metade, chegando nos 100 trilhões mencionados, arredondando para baixo.
**Conversas realizadas em grupos online, concedidas por Maria Aparecida (Cidinha) de Carvalho.