Coluna da Isa Bentes*
Nos dias 18 e 19 de novembro, aconteceu na cidade do Porto a I Feira Internacional de Cânhamo, na Alfândega do porto. Muitas empresas de fora de Portugal, principalmente espanholas e holandesas, apresentaram produtos originários da maconha, com destaque para os óleos a base de cannabis para finalidades medicinais, e uma gastronomia que ofertava de bolos a cervejas à base da erva.
Além disso, toda uma parafernalha para fumar ganza – como chamam aqui em terras lusas -, além de exposição de grow box, fertilizantes, preservativos e uma infinidade de brindes de revistas, sedas, chaveiros, isqueiros, pôster, adesivos, panfletos informativos sobre benefícios para saúde do uso da cannabis. A feira não tinha grandes proporções e o espaço ficou demasiado pequeno para o público; é a primeira vez que algo desta natureza é realizada em Portugal.
Alguns debates ocorreram no ambiente do festival: consumo não problemático de cannabis, apresentada pela professora da Universidade Católica do Porto, Maria do Carmo Carvalho, e pela Olga Cruz, professora do Instituto Universitário da Maia. Em seguida veio a mesa sobre Cannabis e a Legislação, com Purificação dos Anjos, que faz parte da comissão de Dissuasão de Toxicodependência do Porto, João Vasconcelos, integrante da Associação de Estudos sobre Cannabis em Portugal, Joana Canêdo, ativista, e Rui Coimbra, que integra um grupo denominado “Consumidores associados sobrevivem organizados”.
Essa mesa teve um forte viés sobre os rumos da descriminalização das drogas em Portugal e das estratégias do que eles chamam de redução do risco e minimização do dano em diversas cenas de uso, que no Brasil entendemos por redução de danos. A mesa mais noticiada foi sobre o futuro político, com Moisés Ferreira, deputado pelo Bloco de Esquerda, apontando para a necessidade da regulamentação do autocultivo e da possibilidade de adquirir cannabis em locais autorizados para consumo; em dezembro haverá uma audiência pública para discutir tais questões.
Dia 19 não estive ao festival, mas as mesas continuaram mais numa vertente dos usos para finalidades medicinais da cannabis. Entretanto, vale ressaltar que o evento tinha um espaço destinado à convivência para o público infantil: distante dos stands onde havia disponível os mais variados produtos derivados da cannabis e dos locais destinados para fumantes; o espaço idealizado para crianças ficava próximo às palestras e aos locais de alimentação. Algo muito distante para uma sociedade que boicota museus e exposições por expor a história da sexualidade e suas práticas plurais da contemporaneidade.
Uma coisa perceptível é que, ao contrário do que pensamos, as indústrias estão a coçar os bolsos para esse cenário de investimento no âmbito medicamentoso. Em Portugal, em Cantanhede (distrito de Coimbra), já está a crescer a maior plantação de maconha do país pela Tilray, uma empresa canadense, com um investimento de 20 milhões de euros até 2020, com uma previsão de produzir 60 toneladas até o fim de 2018. Não existe moralidade para o capital, cada vez mais os países estão regulando a maconha para finalidades medicinais porque sobre o sofrimento alheio não há tabus para discutir a necessidade da existência desse mercado. A sociedade aceita mais palatavelmente que sejam viáveis tais plantações, e o mercado que se regulou na Califórnia parece atraente e atende aos desejos da indústria farmacêutica, fundamentalmente.
Nos países que têm descriminalizado o consumo, essa vertente da saúde pública é um investimento a longo prazo. Para os países do sul global, mantém-se a perspectiva da segurança pública e da guerra para garantir os lucros da indústria de armas e o controle social de determinados grupos sociais. Enquanto o norte global entende o indivíduo com problema abusivo de drogas com uma rede de atenção para a redução do risco e minimização do dano e leiloa os bens dos grandes traficante, o sul global entende o indivíduo com problema abusivo de drogas como criminoso e oferta às penitenciárias, protegendo os bens dos grandes traficantes de drogas.
Por vezes, em alguns meios antiproibicionistas, se minimiza a importância dos processos de descriminalização por ser uma medida que não radicaliza com a estrutura da guerra às drogas. Não que isso não seja de todo uma verdade, mas a descriminalização tem surtido efeitos no sentido de transformar a consciência de uma forma geral da sociedade para compreender determinadas práticas de consumo de drogas, de respeito e cuidado ao indivíduo em situação de abuso e, guardada as devidas proporções históricas e práticas culturais, desnaturalizar os tabus que foram impregnados ao longo dos tempos sobre substâncias alteradoras da nossa consciência. Talvez seja viável como uma etapa de transição necessária para a regulação de toda a cadeia produtiva, no sentido de que prudente até abrandar os efeitos nefastos promovidos pela política de proibição generalizada das drogas.
Enquanto escrevo, é difícil não comparar vários elementos entre Portugal e Brasil, porque falo de onde venho para onde estou, logo não consigo eleger um ponto crucial para colocar em diálogo essas duas perspectivas. Realidades distintas. Consciências colonizadas e colonizadoras. Apropriações discrepantes da vida prática. Não dá para fazer comparações simplistas ao dizer que para resolver a questão do uso abusivo e expansivo de heroína Portugal implementou a política de descriminalização, enquanto o Brasil reforça e eleva a letalidade da segurança pública militarizada para gerir os territórios de consumo de crack. O modelo legalista não resolve a contradição nem a complexidade envolvida nessa trama de proibição e regulação. São várias as ponderações a serem feitas na política e na percepção do uso de drogas, mas uma coisa é certa: romper minimamente com a lógica de guerra às drogas é ofertar um tipo de racionalidade que possibilita a construção de um novo modelo de sociedade mais justa e humanizada.
*Isabela Bentes é socióloga pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Mestra em Sociologia pela Universidade de Brasília e integrante do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre psicoativos. E-mail: isa.bentes@gmail.com