por Havanna Marques e Juliana Paula, do Coletivo DAR.
Esse texto foi escrito por quatro mãos e dois corações que têm muito em comum, pois se amam e pertencem a duas mulheres, filhas de mulheres pretas (mineira e nordestina), filhas de homens complicados (mas amados), nascidas e crescidas na periferia, na zona sul, usuárias de drogas lícitas e ilícitas e que, por amor e militância, um dia se encontraram no rolê antiproibicionista.
Os fatos
Me chamo Havanna e cresci no Jd. Selma e no Jd. Miriam (zona sul de São Paulo). Hoje milito no Coletivo DAR e na Bloc Feminista da Marcha da Maconha de São Paulo.
Como eu vim parar aqui? Com certeza por alguns privilégios, que, apesar de filha de uma mulher preta, pobre e nordestina e um pai que não frequentou escola, consegui alcançar alguns lugares, a despeito das dificuldades que existem na perifa (mais ainda pra quem é pret@ e reconheço que a minha pele branca tem muita influencia no alcance de algumas oportunidades, principalmente pra estudar e pra conseguir emprego).
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Me chamo Juliana. Durante a infância, por vários motivos a gente se mudava com frequência e cresci por diversas quebradas de São Paulo: Campo Limpo, Ângela, Piraporinha, Embu, Taboão da Serra. Hoje eu milito no Coletivo DAR e na Bloc Feminista da Marcha da Maconha de São Paulo. Vim parar aqui porque comecei a trabalhar num CAPS-AD, recém-formada e me interessei irremediavelmente pela pauta antiproibicionista. Apesar de mulher preta de quebrada, nessa relação desigual de classes e oportunidades, eu me vi acessando privilégios em alguns momentos da vida. Dois deles foram me formar em psicologia e passar num concurso público.
As nossas periferias
H: O Jd. Selma encontra-se no distrito da Cidade Ademar e, para esse texto, fui consultar o infográfico da violência, no distrito que abrange os bairros que circulei na infância e adolescência. Cidade Ademar carrega consigo os seguintes números, apenas em janeiro de 2017. Na lista dos bairros mais violentos, a Cidade Ademar está em:
*3º lugar em número de latrocínios;
*7º lugar em número de homicídios;
*9º lugar em número de estupros;
*15º lugar em número de tráfico de drogas;
*28º lugar em número de lesoes corporais;
*32º lugar em número de lugar de roubos.
Sabe-se que na periferia, onde todas essas coisas acontecem, parte significativa dos conflitos acontece “motivados pelas drogas”, seja pela disputa da biqueira (dá-lhe toque de recolher pela disputa, aqueles fogos em dia aleatório da semana – Salve! Chegou da boa – minha mãe fala até hoje fazendo piada, porque em meio a tanta desigualdade e desgraça, a gente desenvolve um senso de humor absurdo. Precisa rir né!). Lá o recolhe dos PM é muito descarado! Muito! Dá muito ódio! Entram na Jóia do Alvarenga, a padoca, com a mão na pt, aquela leve encostada no caixa, vai pra fora, um bolinho num saquinho de pão. Após uma morte, sempre o bordão “tava doidão né”, a gente escuta em todos os crimes que acontecem no bairro, seja porque a polícia se sente no direito de chegar lá e passar geral, seja porque o mano “ta doidão”, vai roubar e puxa o gatilho. “Eita caraia! A rua de trás tá no Cidade Alerta! Mãe, corre, põe na Record”. A máquina de violência não tem fim.
Depois das 22h até asseis da manhã, principalmente sendo mulher, a última coisa que você quer é circular nessas ruas! O estupro, bom, no Brasil uma mulher é estuprada a cada 11 minutos, e os homens se sentem mais legitimados a fazer isso à medida que podem se justificar por estarem drogados/bêbados, enquanto a mulher se torna mais vulnerável e é culpabilizada se estiver drogada/bêbada.
Na periferia, a questão de gênero é mais latente, pois o debate de gênero infelizmente não tem espaço em boa parte dos locais, especialmente no íntimo das casas. “Meu corpo, minhas regras” ainda não existe. E a gente acaba tendo sim que ficar ligeira com o que veste e onde passa e se responsabilizar por uma CARALHADA de coisa que, com certeza, não é nossa responsa!
J: O local onde vivi por mais tempo foi o Taboão, mas utilizando o gráfico que mostra apenas informações sobre a cidade de São Paulo, peguei o Campo Limpo para checar, considerando ser o local onde morei na adolescência e me expunha mais a riscos.
O Campo Limpo está em 6º lugar em numero de estupros e em 3º no de latrocínios na lista dos bairros mais violentos da capital (em janeiro/2017).
Verificar esses números nos leva a várias reflexões, uma delas é a de que, como mulheres crescidas na periferia, conseguir chegar até aqui faz de nós sobreviventes sim, o contrário da estatística. Privilegiadas, talvez. Sortudas, com certeza.
O antiproibicionismo
H: Acredito que, das muitas questões que me trouxeram ao coletivo eà militância, essas são as principais:
*O fato de gostar de usar drogas, e fazer uso delas na periferia;
*O fato de um primo ter morrido na cadeia e o outro frequentar a cracolândia;
*O fato de as pessoas precisarem ter dinheiro pra poder comer (sério, eu nunca entendi isso…). Odiei o capitalismo antes mesmo de saber que ele tinha esse nome…
Quando vejo esses números do infográfico, eu não consigo imaginar uma outra possibilidade melhor para essas questões que a legalização de todas as drogas. E como essa discussão ainda é difícil em muitas quebradas: falar de legalização com a mãe do menino que trabalha pro tráfico, que tá dependente de crack e já passou pela fundação e pelo CDP é foda. Nessas horas a gente tem que ver que tem muito mais pra ouvir do que pra falar. Quando eu vejo isso penso automaticamente: se não fosse a guerra às drogas, até o acesso ao debate ia ser mais viável na quebrada. Quanto mais proíbem, mais as pessoas morrem, mais se matam e mais a polícia aniquila em nome da Ordem e Progresso.
Mas até aqui falamos da causa, vamos falar da militância.
J: Quando colei no DAR pela primeira vez, logo notei o que antes já tinha sido percebido em outros espaços “progressistas super daoras da esquerda”: uma maioria de pessoas brancas de classe média. Sim, são muitas pessoas brancas e, com elas, branquitude. Porém encontrei nesse coletivo algumas coisas que não encontrei por aí – do contrário não estaria mais nele.
A realidade da militância, não só a antiproibicionista, por muito tempo foi essa: uma quantidade significativa de play que teve privilégios garantidores da possibilidade de se dedicar à reflexão, à pesquisa e à militância em causas progressistas e importantes pra caramba, boa parte delas diretamente relacionada com a vida e os direitos de pessoas pretas, pobres e periféricas.
Isso mudou!
Hoje podemos verificar um número muito maior de pessoas não brancas e de quebrada acessando a militância do centro (sim, do centro, porque na periferia sempre teve luta, não foi a USP que inventou a resistência).
Atualmente a galera das quebradas tem ocupado muitos desses espaços de militância pra discutir pautas progressistas que tanto nos atingem e influenciam o rumo de nossas vidas.
E o que faz a branquitude?
O que vejo como mulher preta nesse role, não raras vezes, é uma galera que adora ser amiga das preta, adora colar na quebrada cas pobre, adora curtir um baile de favela, falar nas nossas gírias e agir como se fosse daqui, só que é de lá. Aí vou citar o Emicida pra explicar, é o seguinte: “nem todo mundo que tá, é. Nem todo mundo que é, tá.”
Abrir espaço pra nós colarmos com nossa pauta e não com vocês falando por nós, isso é massa e já demorou mesmo pra rolar, mas segura a marimba aí, continuar falando por nós enquanto nos abraça, dá risada e tira selfie, não dá.
Infelizmente ainda vemos muita segregação, a galera gosta que os preto cole, mas nem sempre quer discutir as pauta dos preto, não prioriza, não consegue ouvir, não deixa falar. A gana por ensinar, o costume de ser melhor, de estar numa posição social, cultural e econômica superior, o jeitinho de homem branco colonizador estão constantemente traindo a frágil e branca militância de esquerda.
Ontem nós não tínhamos espaço, hoje, tal como os abolicionistas, fingem nos dar acesso, mas nos roubam muitos espaços de fala, se apropriam das nossas pautas, tradições, música, crenças e fazem parecer que essa militância também é nossa, que essa sociedade é nossa, que esse protagonismo é nosso. Quando continua sendo deles: dos homens, dos burgueses, dos brancos, dos acadêmicos, dos colonizadores, dos escravistas!
Hora de fazer como diz o meme e começar a dançar o funk do baile com uma mãozinha na consciência.
A luta de classes e o papo reto
Então assim, não vem fetichizar a periferia!
Vale lembrar que, mano, NÃO EXISTE o glamour na quebrada! A maioria que tá lá, quer sair. Sem hipocrisia! A periferia sofre um fetiche que está na moda! Vira objeto de estudo dos acadêmicos das universidades que a maioria de nós não frequenta, que quando chega numa faculdade, ainda que não seja a “uspi”, a primeira coisa que pensamos é: “mano que orgulho pra Dona Fulana” (tradição a gente carrega né!).
Pois é, galera enche a boca pra falar da quebrada! Quebrada essa que a gente saiu há pouco tempo, pois não tinha como mais demorarduas horas pra chegar no trampo todo dia! Até hoje eu tenho medo da chuva… O paulistano que mora na quebrada tem muito medo de chuva, pois chegar em casa é foda! Isso quando não corre o risco de chegar e não ter casa. O lazer, quando tinha, era o McDonalds e algumas vezes o cinema do shopping (e isso já era um puta privilégio). Não tinha nem parque direito, nem praça, não tinha viagem pra muito mais longe que a Praia Grande no fim do ano.
Galera gosta de se dizer de quebrada. Quebrada essa, que por mais que a gente quisesse, ou tivesse interesse, não podia colar no pagodinho da padaria, porque moça que se dá o valor, não cola nesse rolê! É, morando na periferia, muitas vezes é retirado de nós a única coisa que nós temos acesso por medo e zelo das nossas mães, em sua maioria. Porque o maior medo de uma mãe periférica é filh@ não voltar pra casa!
Bom, na perifa a gente se liga cedo que os playboys que colam lá, pra eles nunca vai sujar e a casa nunca vai cair. Se der BO o bagulho vai pegar pra quem tá lá. E vai pegar pra quem é pret@ primeiro! E o foda é que, ainda que a gente debata, ainda que a gente discuta, sempre haverá as diferenças de classes entre nós, militância, e uma briga de status entre nós, periferia.
“Status: um nome que um branco inventou pra foder com preto” (Mano Brown)
A pauta da guerra às drogas precisa muito mais e urgentemente da presença da perifa. Com toda sua fúria. Com toda sua revolta. Por cada corpo derrubado no escadão. Máximo respeito por esses corpos. Por essas mães. Por essas lágrimas. Por uma razão simples: quem discute as mortes na favela é gente privilegiada. Gente branca e burguesa. Gente que não tá morrendo, não vai presa. E nós precisamos falar disso entre nós. Pois quando um branco privilegiado fala, quando um branco estudado chega na nossa quebrada a gente sabe que el@ não é dali. O jeito que fala, o jeito que olha, a gente sabe que aqueles pés não pisaram o nosso chão.
E o que sentimos? Uma ausência de sentir o que é nosso. De uma pauta que é nossa, sim. E quando chegamos em alguma perifa, eu me identifico no olhar de cada mãe e de cada criança. De cada adolescente que sonha! Porque eu sei o que ele sonha, e que muito em breve ele e ela vai compreender que não tem o direito de sonhar, e isso dói! A gente conhece a angústia da hora no relógio, quando sua mãe não chega do trampo, ou desse filho que tá fazendo o corre, independente do corre que seja e não chega. Eu conheço a angústia do relógio, do pai, mas principalmente da mãe e da filha.
É muito da hora poder discutir essa pauta na quebrada. Hoje, na periferia que dá, que chegamos com o coletivo ou por meio da minha mãe com os alunos do Jd. Planalto, trocando uma ideia na moral, sendo ali nós mesmas, o que a gente planta não é sonho, pois a gente não pode sonhar, a gente luta pela mudança é pela revolta. É pelos privilégios que não temos. É pela desigualdade mesmo. E nos apropriamos do direito da fala, pois chamar a periferia pro debate é da hora, mas a burguesia branca tá pronta pra ver a gente se apropriar da pauta que é nossa? E não é só a pauta, mas também os espaços…pois o debate te leva a caminhos e esses a lugares… Já assistindo alguns conflitos de classe na militância, a gente pensa, na hora que a perifa for maioria, da hora “muita treta vish”!
Então assim, da hora, valeu aí por trazer a palavra do antiproibicionismo, mas ó, acho que isso é mais nosso do que seu, sou mulher preta de quebrada, respeita minha história, rapaz! Eu tenho bastante pra te falar também, bora ouvir?
Falta um pouco ainda pra galera saber pisar. Pisar fofo. Por humildade na fala. No proceder com a galera. E isso aí só tem pra dar, quem tem. E só tem, quem não teve muito mais que isso! Seguimos achando muito louco quando a gente se apropria da fala. Da nossa revolta. A gente sobreviveu até aqui e não tamo falando de 30 anos, tamo falando de séculos e de uma história de oportunidades retiradas por ser mulher, por ser preta, por ser pobre. Por ser uma mulher preta pobre.
Não pretendemos dividir a militância, pelo contrário, seguimos num esforço pra ser junt@s, mas com o entendimento e respeito às nossas diferenças. A guerra exige luta e na luta aliad@s. Mas essa pauta, essa luta aindaserão protagonizadas por quem é de direito. Não falem mais de nós, deixa que a gente sabe falar!
“E as ocorrências prosseguem sem problema nenhum
Continua-se o pânico na zona sul”