Por Gabriela Moncau (Coletivo DAR)
Pow! E a Marcha da Maconha completa uma década tomando as ruas de São Paulo. Não sei se por persistência, sangue nozói, beck na boca: fato é que há dez anos a gente grita com nossas fumaças e fuma com nossas vozes, que num tamo aceitando de cabeça baixa esse mundo do jeito que tá.
Hoje a Marcha da Maconha já é ato consolidado no calendário de São Paulo. Ao som de “ei polícia, maconha é uma delícia; ei maconha, polícia é uma vergonha”, de 70 a 100 mil pessoas – maioria de jovens e cada vez mais da periferia – ocupam as ruas desacreditando a lei proibicionista. Durante maio e junho acontecem as marchas regionais, espalhadas pelas quebradas, que é onde a guerra estrala. Nesse ano de 2018 rolaram na zona leste (Itaquera e São Mateus), zona sul (Grajaú),zona oeste (Jardim Arpoador) e emFrancisco Morato e aindavão rolar nazona norte (Freguesia do Ó) e emSanto André. (Se cê tiver na pegada de organizar no seu bairro, da um salve!).
E já que completamo dez anos queimando tudo, tamo em festa. Tamo em festa, mas também em luto e em luta. Apesar das cicatrizes no coração, o sorriso no rosto, porque a história dessa década aí é linda. Vou contar procêis.
Do tempo em que nossas camisetas eram censuradas com fita isolante
Parece piada, mas é verdade. De 2008 até 2011 a Marcha da Maconha SP era proibida pela justiça (sempre um dia antes, pra não dar tempo da gente recorrer). O poder da toga, do martelo, da pele branca e do bolso cheio tira dos desembargadores qualquer preocupação com a coerência. Não se importavam de serem patéticos a ponto de acusar de apologia ao crime pessoas que estão protestando pra que algo justamente deixe de ser crime.
O parque Ibirapuera foi onde tudo começou, em 2008. Nesse ano, a Marcha da Maconha foi marcada em sete cidades brasileiras. Em São Paulo, cerca de 50 manifestantes, cartazes em branco e fita na boca. No ano seguinte, 200 pessoas. Em 2010 surge o Coletivo DAR em sampa e o Movimento pela Legalização no Rio de Janeiro, e os dois já estavam bem estruturados na época das marchas. É o ano que, em São Paulo, com umas 500 pessoas, pela primeira vez a marcha de fato marcha – pelo direito de falar. A PM enche o saco no final, com spray de pimenta e um detido (um mano negro, por que será?).
Até 2010 o foco da Marcha era muito mais na maconha, no usuário e no poder marchar. A gente era ainda meia dúzia de gato pingado e criminalizados, então a relação com a polícia e a justiça era delicada e a presença dos políticos ainda não era mal vista – pelo contrário, muitas vezes era tida como uma proteção contra a repressão. Que bom que os tempos mudaram, falaí.
2011: a virada
2011 foi foda, em todos sentidos. Na minha opinião, esse ano foi um embrião do que seria junho de 2013. A jornada de luta contra o aumento da tarifa anunciava isso, e a Marcha da Maconha também. Proibidos pela justiça de novo, pra variar, a gente dessa vez foi pra Paulista. Um dia antes a PM chamou uma reunião com o movimento. Fomos. O “”combinado”” foi que, da nossa parte, marcharíamos pela liberdade de expressão e da parte deles, não nos reprimiriam. Adivinha quem cumpriu e quem não cumpriu?
Chuva de bombas, bala de borracha, spray de pimenta, feridos e detidos. Eles tavam tão lokos que prenderam até um cara que carregava uma árvore de papel com a placa “isso é um coqueiro”. Éramos mil manifestantes. A marcha desceu até o centro tomando bomba nas costas e subiu tudo de volta tomando bomba na cara, terminando na frente da delegacia. Não arredou o pé até os detidos serem libertos.
A indignação com a repressão foi geral. Tem um vídeo da TV Folha que circulou bastante e, apesar de ter a Soninha como principal entrevistada ao invés de alguém do movimento, mostra bem como foi surreal. A Marcha da Maconha, o direito de se manifestar, a violência policial e a legalização tomaram conta dos assuntos, da TV às conversas de boteco.
O paradigma proibicionista não podia ser tocado, nem no âmbito do debate. Isso foi quebrado pela Marcha da Maconha.
No sábado seguinte fizemos a Marcha da Liberdade, que juntou uma pá de gente que antes não ia na Marcha da Maconha mas que ficou revoltada com a repressão. Nas semanas seguintes acontecem marchas da liberdade em mais de 40 cidades pelo país. Com a pressão das ruas, o STF decide pelo óbvio: qualquer impedimento à realização das Marchas da Maconha pelo Brasil vai contra o direito à expressão e manifestação.
Depois dessa, definimos que nunca mais vamos à reunião nenhuma com polícia antes do ato. O diálogo com eles é ali na hora mesmo (se eles estiverem presentes, porque se um dia não estiverem, jah bless) e só pra afirmar o que foi decidido coletivamente. Até porque na Marcha quem manda de fato é o coletivo, de gente por aí querendo ser líder dos outros já tamo suave.
A Marcha da Maconha SP luta pelo fim da guerra
Desde que pudemos parar de lutar pra poder falar, pudemos concentrar nossos esforços exatamente no nosso conteúdo. “Basta de guerra: por outra política de drogas” foi o lema da Marcha da Maconha SP em 2012, que juntou cerca decinco mil pessoas, já deixando explícito que nossa luta não é só sobre usuário nem só sobre maconha: é pelo fim da guerra às drogas. A proibição das drogas não tem nada a ver com a defesa da saúde ou com proteção das pessoas, pra dizer bem a verdade ela não tem nada a ver nem com drogas. É um pretexto para o Estado controlar, matar e encarcerar o povo preto, pobre e periférico. E a Marcha em São Paulo, desde que pôde falar, fala isso.
A discussão sobre a política de drogas tem a ver com um monte de assuntos: gênero, raça, classe, medicina, religião, prazer, ciência, controle, contracultura, militarização, segurança pública, sistema penal, a lista é imensa. Daí a ideia que existe desde 2012 dos blocos na Marcha da Maconha SP, que se organizam de forma autônoma e dão conta dessa diversidade. Existem os blocos feminista, medicinal, religioso, psicodélico, ano passado tivemos o bloco pela liberdade do Rafael Braga, só pra citar alguns.
E a marofa? Se até 2011 a gente ainda orientava, nos panfletos por exemplo, pras pessoas não levarem beck pro ato (por conta da repressão a qual a gente tava sempre sujeito), a partir de 2012 a Marcha da Maconha SP nunca mais deixou de ser acompanhada pelo seu cheiro característico.
Nessa época algumas coisas também tomam mais forma do ponto de vista da nossa organização, e sefortalecem ao longo dos anos. Pautada por uma identificação com os movimentos autônomos, a Marcha atua com decisões por consenso, sem liderança, sem carro de som, com pluralidade de vozes, jogral e nenhum vínculo ou contrapartida para nenhuma empresa, instituição, governo ou partido político.
Qualquer semelhança entre esses princípios organizativos e o jeitocom que as ruas foram tomadas nas mobilizações de junho de 2013, impulsionadas pelos nossos parceiros de luta do MPL, não é mera coincidência. Aliás, em 2013, sob o lema “A proibição mata, legalize a vida”, a Marcha da Maconha SP aconteceu justamente no mês de junho.
Em 2014, ano de Copa no Brasil, com a polícia toda trabalhadinha no seu novo uniforme e treinamento à la Israel, a faixa da frente estampava “Cultivar a liberdade para não colher a guerra”. Foi a partir desse ano que, a despeito do irrefutável crescimento da manifestação, começa o boicote midiático à Marcha da Maconha SP.
O eixo de 2015, “Em memória aos nossos mortos, pela liberdade dos nossos presos: legalize”, parecia antecipar que em agosto daquele ano aconteceria em Osasco e Barueri a maior chacina de São Paulo dos tempos recentes. Nesse ano fizemos, pela primeira vez, um desconvite público à PM e começam as atividades regionais nas periferias, ainda tímidas. A Marcha de 2015 reuniu umas 20 mil pessoas e terminou no Largo São Francisco, com a estátua da praça do Patriarca usando saia e segurando um baseadão e uma projeção na Secretaria de Segurança Pública com os dados das vítimas da guerra.
Se a lei é injusta, desobedeça
Já com cerca de 40 mil pessoas em 2016, com o eixo “Fogo na bomba e paz na quebrada”, a Marcha se consolida como, atualmente, a maior ação direta de desobediência civil em massa de São Paulo. Dessa vez o maconhaço foi convocado com antecedência, divulgado nos nossos materiais.
Além, obviamente, de ser divertido uma multidão acender seus baseados ao mesmo tempo em plena av. Paulista e ainda gritando pra Rocam que fumamos de manhã, o maconhaço é sintomático da escolha que a Marcha da Maconha SP faz pelo caminho da autonomia.
A Marcha é, na prática, o descrédito da proibição. Não estamos pedindo pra nenhum juiz ou político que nos conceda nossa liberdade de decidir o que fazer do nosso próprio corpo. Aliás, liberdade não se pede. Se toma. E é isso que estamos fazendo. Em 2017 a gente era quase 100 mil pessoas, o povo mal cabia na praça da Sé, onde terminou o ato, que teve como eixo “Plantar sementes, quebrar correntes”. A proibição, ali e naquele momento, deixava de existir.
Temos como caminho a mudança de mentalidade, tentamos convencer as pessoas de que nós, enquanto sociedade, precisamos pensar em outras formas de lidar com as drogas: formas baseadas na redução de danos, na dignidade, na liberdade, no cuidado, no respeito às escolhas das pessoas. A mudança que a gente acredita vem de baixo.
10.000 anos de uso, 100 anos de guerra, 10 anos de Marcha
Tamo comemorando nossos dez anos de Marcha da Maconha SP: nesse tempo a gente já passou por ridicularização, repressão, criminalização e uma pá de ão e mesmo assim a gente resistiu e ainda por cima continuamos crescendo. E tamo comemorando não só porque achamos isso tudo daora, mas também porque é urgente. Não foi só a Marcha que cresceu nesses dez anos: a guerra também.
O baguio tá loko e o processo num tá nem lento: de 2006 até 2017, a população carcerária do Brasil aumentou 480%. E ainda tem gente que fala que o que falta aqui é mais punição. Em junho de 2016 o total de pessoas presas no país chegou a 726.712, quase o dobro do número de vagas, diga-se de passagem.
Graças à Lei de Drogas do nosso país (11.343/06), quem é acusado de tráfico (decisão subjetiva nada racista feita pela polícia, delegado ou juiz), não pode aguardar o julgamento em liberdade. Não à toa que, de todas as pessoas presas no Brasil, 40% são presas provisórias. Entre a população carcerária – maioria de jovens entre 18 a 29 anos – a principal acusação é tráfico de drogas (30%). E todo camburão, sabemos, tem um pouco de navio negreiro: 64% das pessoas presas no Brasil são negras. Esses são os dados mais recentes do Departamento Penitenciário Nacional, referentes a 2016.
No caso das mulheres encarceradas, então, o crescimento tá sinistro. O suficiente para dar ao Brasil o título do país onde mais aumentou o aprisionamento feminino entre 2000 e 2016. O número de mulheres atrás das grades nesse período disparou 455%! Dessas mulheres, 62% responde por tráfico de drogas. São em sua maioria negras (62%) e mães (74%). Praticamente metade delas – 45% – ainda nem foi julgada.
Isso que tamo falando só das grades. Mas a gente também vive um ininterrupto genocídio nas ruas. Um estudo feito pelo NEV-USP e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostra que só no ano passado o Brasil teve mais de 5 mil pessoas mortas pela polícia, um aumento de 19% em relação ao ano anterior. No estado de São Paulo a polícia matou 940 pessoas em 2017.
E durante esses dez anos em que São Paulo tem uma Marcha da Maconha pra chamar de sua, entra governo e sai governo e se depender dos de cima, a coisa vai na mesma levada. Lula, Dilma e Temer, no que diz respeito à política de drogas, representam uma continuidade. Explosão do encarceramento, militarização, polícia pacificadora, programa “crack é possível vencer”, Forças Armadas nas favelas, intervenção militar, Amarildos, Cláudias, Rafaéis Bragas, Marielles… Não é de se espantar que entre os manifestantes que vão à Marcha da Maconha, a maioria não confia em políticos e em partidos. Nossa luta é contra a violência do Estado – independente de quem esteja sentado no trono.
Nessa década de recrudescimento da guerra, a história da Marcha da Maconha SP é um sinal de que as pessoas estão indignadas, dispostas a resistir. É essa resistência, tão urgente nos nossos tempos, que comemoramos.
O Estado vem quente. Mas nois já tá queimando.