por Júlio Delmanto (Coletivo DAR)
Lançado em agosto pela Editora Cia. das Letras, o livro Irmãos: uma história do PCC, do sociólogo Gabriel Feltran, é daqueles lançamentos que puxa clichês: “já nasce clássico”, “definitivo”, “instigante”, eu poderia usar uma série de qualificações tipo essas aspas que as editoras, os marketeiros ou os distribuidores de filmes colocam nas capas e divulgações. E estaria sendo bem sincero: o livro é excelente.
Escrito de forma diferente do que estamos acostumados quando se trata de academia, o livro é um relato muito bem feito sobre a trajetória e a importância do PCC – em São Paulo, no Brasil e no mundo – mas também, e principalmente, um ensaio sobre as consequências econômicas, políticas e sociais do crescimento dessa organização e de sua ideologia. Baseado em décadas de pesquisa de campo, “Irmãos” apresenta dados concretos e também reflexões teóricas muito importantes para qualquer um que quer compreender o Brasil atual – e mudar o Brasil futuro, claro.
Conversei de forma breve com Feltran sobre esse lançamento – na real, diante da montanha de informações e conhecimento que ele tem qualquer conversa seria breve, insuficiente. A ideia não é necessariamente resumir os pontos do livro nem debater lacunas ou reflexões que podem ser desenvolvidas a partir das trazidas pelo autor: a ideia é fazer vocês lerem mesmo.
DAR – O seu livro é um ensaio tanto sobre o PCC quanto sua própria trajetória de pesquisa ne, e me chamou atenção a forma com que ele é escrito, em primeira pessoa, mais fluido, e não exatamente acadêmico como vemos tradicionalmente, com notas, bibliografia, muitas citações, etc. Como foi essa opção e esse exercício de se expressar dessa forma, você acha que os debates do livro podem atingir mais gente por isso?
GABRIEL – O convite para esse livro parte de um descompasso. De um lado, na Universidade havia muito conhecimento novo, em especial nos temas da violência, segurança e PCC. De outro, essa é uma área em que o debate público é paupérrimo, pior do que há trinta anos atrás. Uma das causas desse descompasso é a forma de escrita acadêmica, muito hermética, inacessível para a maioria dos leitores. Se a ideia era comunicar melhor o que se sabia na Universidade, era preciso também outra linguagem. O desafio foi achar o tom entre o rigor acadêmico, a preservar, e a escrita acessível. Isso foi o que deu mais trabalho no livro, porque boa parte da pesquisa já estava feita.
DAR- Certamente uma das inovações do livro é a proposta de encarar o PCC mais como uma sociedade secreta, uma irmandade, do que como uma empresa ou um comando militar, por mais que ele tenha também elementos dessas formas de organização. Você acha que isso é mais uma especificidade ou um diferencial do Comando, ou seja, seriam essas características explicações também para o sucesso do PCC frente a outros grupos criminais e ao próprio Estado?
GABRIEL – Sem dúvida. Não conheço outros grupos criminais que se organizem assim, e isso facilita demais a expansão do PCC. Um comando militar, para crescer, tem que controlar um território pela guerra. Uma empresa deve controlar os mercados pela concorrência. Uma irmandade pode fazer as duas coisas, mas pode também fazer alianças com quem já está estabelecido no território, no mercado.
DAR- Em outro momento você também diferencia o PCC dos movimentos sociais, da igreja e do Estado, “redes” que se articulam na periferia mas que na sua opinião buscam a totalidade, ao contrário do PCC. No entanto, na sua própria narrativa das origens e dos ideais do PCC vemos dinâmicas que me parecem muito similares as dos movimentos sociais, por mais que o elemento da busca pelo progresso individual (lucro) talvez seja o principal diferencial. Mas do mesmo jeito que o PCC tem elementos de empresa e de comando militar, também se pode dizer que ele tem elementos e práticas de um movimento social, talvez o maior do Brasil?
GABRIEL – Há várias definições de movimentos sociais entre especialistas. Uma vertente francesa e duas norte-americanas dominantes, uma latino-americana, entre outras. Todas elas têm algo em comum, que é a luta pelo bem público. Reforma agrária, igualdade racial, de gênero, direitos trabalhistas, liberdades civis etc. à esquerda, ou luta pela família, direito à propriedade e mesmo à defesa pessoal armada, pela direita. Mesmo que as lutas impliquem agir fora da lei (ocupar propriedades, fazer manifestações não autorizadas ou mesmo guerrilhas), a ideia é que no final seus modos de pensar se tornem norma pública. Ou seja, que vencida a luta, o estado incorpore suas reivindicações. Nesse sentido, o PCC não é um movimento social. A ideia não é se tornar universal, mas viver no crime. Fortalecer o crime, sempre pensado como fratura no corpo social. Porque para seus integrantes a guerra é mais plausível do que o público. A ideia de público, que é de todos, não pode existir de modo universal. Uns são coisa, são verme, pelas atitudes que têm.
DAR – O PCC é de esquerda?
GABRIEL – Não. Nem de direita. A facção trabalha com uma forma de pensar o mundo que não tem as mesmas bases do espectro político partidário. De um lado, a narrativa do PCC sempre se coloca em luta contra as opressões do sistema, se aproximando das esquerdas. De outro lado, ela enxerga as saídas individuais no mercado, como a direita liberal. Mais ainda, concebe a guerra justa como expressão legítima de interesses, como a extrema direita. A coerência entre essas ideologias não pode ser feita na política, ela é mais teológica.
DAR – Outro elemento que me pareceu muito importante no livro é a ênfase no lado econômico da violência. No caso dos roubos de carro (e dos leilões dos carros recuperados), do tabelamento do preço das drogas, dos acertos com os policiais, você demonstra muito bem o componente econômico que a violência tem no nosso país. Você acha que esse é um aspecto do debate sobre segurança que se não é ignorado é no mínimo muito mal abordado por acadêmicos, políticos e pela mídia? Até que se mostra razoavelmente bem quem perde com a violência, mas quase nunca quem ganha.
GABRIEL – Exatamente, estou de acordo. E há muita gente ganhando com os mercados ilegais. Compreendemos tranquilamente, por exemplo, que a industrialização do sudeste a partir dos anos 1950 criou postos de trabalho, que trouxeram migrantes do Nordeste para São Paulo. Mas não pensamos que o mercado da cocaína abriu muitos postos de trabalho nas periferias, a partir dos anos 1980. Se um menino trabalha numa padaria de madrugada, é trabalho infantil. Se atravessa a noite vendendo maconha, é crime. É preciso atentar para o componente econômico do mundo do crime, que entre outras coisas é um mercado de trabalho e de consumo, que precisa de regulação.
DAR – Você destaca várias vezes a questão das determinações do que “é o certo” existirem mas não serem necessariamente prescritivas, não serem ordens mas uma espécie de sugestão de condutas. A caminhada de cada um seria muito respeitada, mas há determinações que precisam ser cumpridas, algumas mais novas outras são tipo cláusulas pétreas, como não caguetar, não estuprar, etc. Como fica essa relação entre a liberdade que um integrante do PCC tem, principalmente em comparação a outros comandos, quando se choca com decisões mais prescritivas, como não fumar crack por exemplo? O que norteia tudo isso é uma moralidade ou são questões mais objetivas, seja políticas ou econômicas?
GABRIEL – Para nós, o princípio de ser justo é oferecer o mesmo tratamento para todos. Gostamos de princípios universais mas, na prática, agimos diferenciando cada situação. Para os caras, é preciso debater cada situação em sua particularidade. E, na prática, há princípios universais – não cagoetar, não fechar com a polícia, não estuprar etc. Então mesmo violação desses princípios vai solicitar, em tese, debates caso a caso. Porque o que é mais certo, nessa forma de justiça, é julgar caso a caso, tratar cada um a partir de sua reputação, sua caminhada, seu histórico. Mesmo que ocorram, na prática, situações mais sumárias.
DAR- No livro Morin en Mexico, do jornalista John Gibler, que manja muito de tráfico e essa dinâmicas, ele comenta como nas disputas entre cartéis no México a única linguagem utilizada é a morte. Não há outras formas de punição, você roubou, matou, denunciou, praticamente qualquer desvio teria como única resposta a morte. Você diria que o PCC conseguiu, ao diminuir os homicídios, introduzir outras palavras nessa linguagem em São Paulo?
GABRIEL – Sem dúvida alguma. Na lógica de justiça do PCC a violência é utilizada em último caso, como recurso legítimo depois de serem expressos os argumentos. Ela não é de forma alguma a principal linguagem da facção em sua comunidade. “Paz entre nós” é o que reduz homicídios. Já para fora da sua comunidade, por exemplo em ações criminais, a violência não é um problema. “Guerra ao sistema”. Essa lógica de separação entre quem “é nois”, e quem não é, é fundamental para entender o uso da violência pela facção.
DAR- A leitura do livro deixa bem óbvio como tanto o governo produziu, e produz, o crime, quanto o crime produz e determina formas de governo. Crime e Estado são diferenciáveis hoje no Brasil? Um funciona sem o outro?
GABRIEL – Eles se diferenciam recortando populações, diferentes, que protegem diferencialmente. Aqueles que o Estado criminaliza são, exatamente, aqueles que o crime protege. E vice versa.
DAR – Ainda nesse tema, achei que a questão do envolvimento do PCC com a política foi pouco abordada no livro. Imagino que obviamente faltem dados sobre isso, sobre lavagem de dinheiro, financiamento de campanhas, acordos com diferentes esferas de governo e tal, mas pela sua experiência você consegue mais ou menos captar que nível de presença na política o PCC, e o narcotráfico em geral, tem no Brasil hoje?
GABRIEL – De fato, falta muita pesquisa nessa área. Não conheço nenhum bom trabalho que tenha conseguido captar essas conexões que, hoje, ouvirmos apenas como rumor, como fofoca, como boato. Seria preciso avançar muito nas pesquisas para dizer com consistência o quanto de dinheiro ilegal está em campanhas políticas, o quanto empresários aparentemente legais estão lavando dinheiro de droga ou outros mercados ilegais. Temos uma pesquisa em andamento que começa a lidar com isso, mas é ainda muito inicial. O que podemos ver no exemplo dos mercados de veículos é que muito dinheiro ilegal volta para a economia formal, legalmente. Os grupos que ganham realmente com esses mercados têm influência suficiente no legislativo, no executivo e judiciário para fazerem as leis e os procedimentos operarem a seu favor. Então, como diz o funk, eles não são fora da lei porque quem faz a lei são eles.
DAR – No livro você fala sobre uma “divisão irreconciliável” entre crime e o tecido social, aponta como cada vez mais inexiste seuqer a promessa de integração dessas populações que hoje abastecem as fileiras do crime e do tráfico na sociedade, como cada vez existe menos um projeto de país. Pois bem, nesse quadro – no qual você descreve muito bem o papel da desigualdade social como dimensão fundamental do crime – como você acha que ficaria a vida dos atuais trabalhadores do tráfico num ambiente de legalização da maconha e possivelmente de todas as drogas proibidas? Mantida a desigualdade brutal de nosso país e se não terminada mas ao menos modificada essa fonte de enormes lucros, como te parece que caminharia a vida das periferias e de alguns desses personagens que você acompanha e relata?
GABRIEL – Acho que devemos olhar para o que está acontecendo com os desmanches de carros, em São Paulo, depois da Lei do Desmonte, que procurava regulá-los. É a experiência empírica de regulação de mercados ilegais mais próxima que conheço. Creio que com as drogas poderia ocorrer o mesmo: uma parte do mercado seria controlada por grandes grupos empresariais, que transformariam os antigos autônomos em subordinados, funcionários ou fornecedores. Outra parte dos empreendedores se esforçaria para caber na lei e teria sua margem de lucros reduzida. E uma franja seguiria agindo ilegalmente. A questão a encarar é sempre essa mesmo: como regular sem reproduzir a desigualdade própria dos mercados.Temos que discutir isso.
DAR- Você acha que nomes importantes da organização, como Marcola, irão ler o seu livro? Se tivesse a oportunidade de conversar com eles, sobre o que teria mais vontade de trocar ideia, que tipo de informação você acha que ainda te falta pra compreender melhor as coisas?
GABRIEL – Não sei dizer se vão ler. Quando escrevo, penso que o texto deve ter análises, não juízos de valor. Releio meus textos como se eu fosse um policial, depois como se fosse um bandido, depois como um leigo, depois como um especialista. A ideia é poder me comunicar com todos, trazendo um ponto de vista diferente sobre o que eles já sabem do assunto. Não é saber mais ou menos, mas olhar de um lugar diferente, que mostra outras faces da mesma coisa. Porque a gente sempre vê uma face, não tem jeito. Nesse sentido, cada nova história que eu conhecer me faz aprender mais. Por isso é sempre tão rico estar em campo.
DAR- Nesses seus muitos anos de pesquisa, como você percebe o entendimento dos envolvidos com o crime em relação às políticas de drogas, ao proibicionismo? É crítico? Isso mudou de alguma forma nos últimos anos ou continuou parecido?
GABRIEL – Honestamente, nunca ouvi os caras falando sobre legalização. De verdade. Acho que, caso haja realmente uma regulamentação dos mercados de droga, os caras vão pensar caso a caso como agir, com base no lucro que eles podem ter com isso. O problema da droga na periferia ou é homogeneamente moralizado (mundo da droga versus mundo do trabalho), ou é pensado como negócio.