Por Daniel Mello*
1.
No dia 7 de setembro de 2017 o céu estava limpo e, ao contrário das minhas expectativas ao sair de casa, o Sambódromo do Anhembi estava lotado para assistir ao desfile do chamado Dia da Independência. “Mas quem sai de casa em um feriado e fica com a cabeça no sol para ver policiais e militares passando na avenida?”, pensei, olhando para a multidão. Aqui e ali, faixas pedindo intervenção e ditadura. Fanfarra, cavalos bem penteados e viaturas novas.
Saí do espaço reservado aos jornalistas e dei uma volta em meio ao público. Logo percebi que a grande maioria eram mães, pais, esposas e filhos dos participantes. Nenhuma descoberta genial. Mas foi ali que comecei a me dar conta do que as polícias significam como força política. Cada fardado pode vincular economicamente e ideologicamente um grupo médio de quatro pessoas (ou mais), se formos levar a sério a proporção que havia entre desfilantes e público naquele dia, fora a reverberação nos círculos de amigos e afetos.
2.
Pode parecer uma contabilidade leviana, mas no ano seguinte foi eleito para a Presidência da República um deputado que, em quase 30 anos de atuação na Câmara Federal, esteve voltado quase exclusivamente para pautas corporativas dos militares e da segurança pública. Na mesma eleição, 28 candidatos com perfil semelhante se tornaram deputados federais.
3.
Não é surpreendente. Só no estado de São Paulo são 84 mil policiais militares, 36 mil agentes penitenciários e 33 mil policiais civis. Ou seja, um terço dos servidores públicos estaduais são agentes da segurança.
4.
Em 2019, o orçamento do estado destinou R$ 10,7 bilhões para o “policiamento”. Habitação teve direito a pouco menos de R$ 1 bilhão; cultura a R$ 800 milhões; saneamento a R$ 600 milhões. Ao sistema prisional foram reservados R$ 3,8 bilhões. O Judiciário custou quase R$ 12 bilhões.
5.
O que tanto faz a polícia com esse dinheiro? Foram abertos 376,2 mil inquéritos policiais em 2019. Estão nesse bolo, 18,3 mil ocorrências por porte de drogas e 47,5 mil por tráfico. Assim, mais de 17% de todo o trabalho da polícia está diretamente ligado à repressão às substâncias classificadas como ilegais, fora as situações associadas. Um terço das prisões em flagrante são por tráfico. (Quanto custa um processo penal em papel & horas de trabalho de juízes e promotores que recebem R$ 50 mil por mês?)
6.
O meu ponto aqui não é simplesmente mostrar que o dinheiro público está sendo muito mal gasto (constatação óbvia, uma vez que a maconha e o crack continuam em todas as esquinas). Estou tentando explicar como a guerra às drogas está no centro do projeto fascista/colonial no Brasil (em outros lugares do mundo também). Existe toda uma economia que está estruturada em torno das políticas de repressão policial.
7.
O dinheiro para habitação disputa a mesma planilha com os fuzis e as viaturas. Quanto menos moradia e saneamento, piores as condições de vida da população. Á medida que pioram as condições de existência, mais vale o risco da renda oferecida pelo mercado ilegal de drogas & outras atividades consideradas criminosas. Quanto mais crimes (ou percepção deles, causada pelos televisivos policiais), mais fácil justificar investimentos em agentes e armas. Importante notar o tratamento ideológico diferenciado de um roubo a mão armada e um roubo de terras (conhecido pelo eufemismo de grilagem).
8.
No ultraliberalismo da ilegalidade não existe mediação ou justiça: a ordem é mantida pela força que, nos nossos tempos, são as armas de fogo. A violência do crime serve como justificativa para o aumento da repressão da polícia. Duas carreiras que pagam mal e oferecem alto risco de vida. Assim, os soldados de um lado e do outro são recrutados pela falta de opções e pelas fantasias de poder & status. A maioria dos considerados criminosos que morre é negra. Do lado da polícia, a mesma coisa. Para os que sobrevivem, ainda há as prisões.
9.
Para os policiais, assim como para todos os soldados que lutam em guerras covardes, é preciso um conjunto de compensações. Figuras políticas que valorizem a suposta bravura são fundamentais para manter o ego dentro do peito exposto a todo tipo de munição. A possibilidade de extrapolar os limites éticos e morais, como o exercício impune do poder de morte, também faz parte do que é oferecido para além das remunerações que não justificam o nível de risco envolvido. Essa prática de assassinatos e tortura só é possível com o respaldo de uma propaganda ideológica que desumanize e demonize o adversário (Saddam Houssein ou Fernandinho Beiramar). Assim, a corporação militar consegue atrair pessoas para além dos que vem por falta de melhores opções de trabalho. Indivíduos com propósitos violentos que, uma vez em campo, vão promover um rompimento generalizado dos limites legais e normalmente aceitáveis.
10.
A destruição liberal do Estado retroalimenta a repressão policial. A associação entre os dois projetos acontece de forma quase natural. Não há ironia no fato de que o comércio ilegal das drogas é o sonho dos que idolatram o mercado acima de tudo: sem impostos, direitos trabalhistas, aposentadoria ou controle de qualidade dos produtos. Para a concorrência existe o cartel ou a eliminação. Talvez nostálgico às famílias que fizeram fortuna matando índios e pequenos agricultores, ou que ainda mantém trabalhadores em regime de escravidão no século XXI. Quantas delas não têm hoje investimentos no transporte internacional de cocaína?
11.
O que liga tudo isso? O racismo, claro. As proibições têm raízes racistas e se voltam contra drogas tradicionais dos povos colonizados – maconha (africana), coca (andina). O que se chama de falta de serviços públicos nada mais é do que uma forma de continuar fugindo à reparação devida às populações descendentes das escravizadas. A repressão, como já foi dito em todas as oportunidades possíveis, também visa as populações negras.
12.
A conclusão? A proibição às drogas tem pouca ligação com os efeitos das drogas, mas é essencial para sustentar uma parte significativa da estrutura colonial do Estado. As forças policiais ocupam literalmente o espaço das chamadas políticas sociais, ou de reparação às populações historicamente prejudicadas. A desarticulação das forças classificadas como de segurança pública é um ponto fundamental para a redução das desigualdades e não pode ser enfrentada em separado. Os privilégios dos operadores do sistema penal, juízes e promotores, também são engrenagem essencial para o funcionamento da máquina de extermínio. São eles que condenam jovens negros por carregarem quantidades irrelevantes de drogas e, ao mesmo tempo, liberam militares envolvidos em assassinatos. O liberalismo é apenas a ideologia de manutenção e aprofundamento dessa estrutura, por isso, se associa ao neofascismo genocida. São, no fundo, a mesma coisa.
*Daniel Mello é jornalista, documentarista e poeta. Faz parte d’A Craco Resiste.