Por Gabriela Moncau, do Coletivo DAR
“Molecada tá morrendo de lança na quebrada”. Os dados pra comprovar isso praticamente não existem já que as mortes costumam ser registradas como parada cardíaca ou coisa parecida. Mas a frase é recorrente. Fato é que nas periferias são poucas as pessoas que não conhecem a história de algum adolescente que morreu depois do uso do lança. Conhecido também como loló, ele é muito usado principalmente nos bailes e fluxos, a proibição e a repressão obviamente não só não ajudam como atrapalham, tem gente morrendo, então como lidar com essa situação?
Essa pergunta chegou de novo pra gente do Coletivo DAR recentemente, dessa vez por parte de uma líder comunitária da zona sul de São Paulo. E então a gente voltou a se debruçar com mais profundidade nesse assunto, fizemos um panfleto pra ser distribuído por aí, e nesse texto estão alguns dos nossos pensamentos e informações que a gente considera importantes que todo mundo saiba sobre o lança perfume.
O lança das antigas e o de hoje
Kevin O Chris, MC Bin Laden, MC GW, MC Jacaré… a lista de funkeiros que tem o lança nas letras que tocam nos bailes é imensa. Se você nunca usou, já deve pelo menos saber (como aparecem nas próprias músicas), que ele é baforado, deixa o pé gelado e que pode ter várias cores.
Mas o que é, no fim das contas, o lança perfume?
É um solvente (uma coisa que se dissolve em outras) e um inalante (aquilo que pode ser aspirado, baforado).
Ele pode ser feito de várias substâncias diferentes e muita gente tem produzido lança de forma caseira. Esse que tá sendo baforado nos fluxos tem vários produtos que são usados na indústria, como um solvente usado pra remover adesivos e tintas (tricloroetileno) e, principalmente, o anti-respingo de solda (diclorometano). Essas duas substâncias são lícitas e são quimicamente parecidas com o cloreto de etila, que é hoje proibido no Brasil e era usado nos lança perfumes de antigamente. Além disso, no loló também rolam misturas com tiner, éter ou clorofórmio e também essências tipo de tutti-frutti, côco, chiclete e outros sabores.
Esse lança de hoje não é o mesmo que os nossos avós e bisavós usavam nos carnavais em 1900 e bolinha. Naquela época ele era legalizado e fabricado em larga escala. Quando apareceu pela primeira vez no começo do século 20 no Rio de Janeiro, o lança era importado de uma empresa francesa chamada Rhodia, que tinha sede em Buenos Aires. E aí pronto, se popularizou. Não demorou pra começar a ser produzido também dentro do Brasil e, regulamentado, seguiu fazendo sucesso durante décadas, principalmente nos carnavais. Foi em 1961 que o governo Jânio Quadros proibiu o loló.
Atualmente o uso é ilegal. Mas a proibição, como todo mundo sabe, nunca impediu e nem vai impedir que as pessoas consumam drogas. A produção do lança de hoje em dia é de baixo custo e a maioria das substâncias usadas na mistura são lícitas.
Os efeitos
Assim que o lança é baforado – ou seja, inalado pela boca num pedaço de pano ou mesmo no próprio tubo, garrafa ou latinha onde ele estiver – a substância vai pros pulmões. De lá pra corrente sanguínea e em seguida pro cérebro.
O primeiro efeito é de euforia, excitação, leveza, vem aquele famoso tuím no ouvido, os pés e as mãos ficam gelados. Em seguida vem o que se chama de depressão do sistema nervoso central, o corpo dá aquela baixada: acontece uma diminuição da atividade cerebral e das frequências cardíaca e respiratória.
A brisa do lança é rápida: dura de 1 a 2 minutos. Por isso que várias vezes ele é usado repetidamente.
Por quê que tem gente que morre?
A maior causa de morte decorrente do uso de lança perfume é a parada cardiorrespiratória.
Como um dos efeitos da substância é essa diminuição das batidas do coração e da respiração, pode acontecer da pessoa desmaiar ou mesmo que o coração, depois de bater num ritmo atordoado, pare.
Se a pessoa que estiver sob efeito de lança tiver um choque de adrenalina – tipo tomar um susto, cheirar cocaína ou tomar um enquadro, por exemplo – o risco de uma arritmia cardíaca é maior.
Não é só na quebrada que se usa lança perfume. Nas festas de boy também têm. Por que, então, que o maior número de mortes é na periferia? Os bailes são quase sempre proibidos, não tem ambulância no fluxo, o SAMU quando chega demora muito, a repressão policial é constante e a molecada pensa duas vezes antes de pedir ajuda porque sabe que pode ser criminalizada.
Como não nos deixa esquecer – e jamais esqueceremos – omassacre praticado pela polícia militar no baile Dz7 em Paraisópolisem dezembro de 2019, é evidente a política de Estado pras festas nas periferias. Não é difícil imaginar qual população que, sob efeito de uma substância que pode trazer riscos para o coração, está mais sujeita a choques de adrenalina ou dificuldades para acessar rapidamente o socorro médico.
Na pegada, então, do nóis por nóis, da informação, do papo reto, da consciência e do auto-conhecimento, seguem algumas dicas pra gente cuidar de nóis, dos nossos e das nossas.
O que fazer se alguém que usou lança começar a passar mal?
> Tire a pessoa do meio da muvuca, deixa ela sentar ou deitar (pra impedir que, caso desmaie, se machuque na queda). Tenha certeza que ela tem espaço pra respirar.
> Se ela tiver desmaiado ligue pro SAMU: 192. Enquanto a ambulância não chega, eles podem dar instruções pelo telefone.
> Se a pessoa estiver desacordada, verifique se ela respira: o peito sobe e desce? Se não, faça compressões cardíacas até o socorro médico chegar. Isso pode salvar uma vida.
Como reduzir os danos e riscos do uso de lança?
Se você fizer a escolha de usar lança perfume, seguem algumas orientações pra se cuidar:
> Sempre tenha alguém de confiança por perto.
> Mesmo que queira ficar loko ou loka, não esquece de beber água durante o rolê.
> Evite o contato desses solventes com a pele.
> Não misture com cocaína: as duas substâncias juntas podem sobrecarregar o coração.
> Evite usar várias vezes seguidas. Faça um intervalo entre as doses.
> Não segure a baforada no pulmão por muito tempo.
> Se perceber que tá passando mal avise alguém de confiança, saia da muvuca e evite ficar de pé.
> Se liga nos sinais do seu corpo: ninguém pode conhecer ele melhor que você. Perceba seus limites, até onde ir.
A gente condensou essas informações num panfletinho, que você pode baixar em jpg (imagens abaixo) ou pdf (panfleto-lanca-a4). Fique à vontade pra divulgar, imprimir, distribuir no seu bairro, no baile. 😉
Quanto mais informação séria a gente tiver sobre as substâncias que a gente usa ou que as pessoas queridas que nos rodeiam estão usando, mais consciência e cuidado a gente vai ter. Racionais já deram a letra há décadas: malandragem de verdade é viver.