Por Jean Gustavo, do Coletivo DAR
“O primeiro caso de coronavírus registrado no Brasil é de um empresário, de 61 anos, que esteve na Itália entre 9 e 20 de fevereiro deste ano. Ele viajou para a região de Lombardia, ao norte do país europeu.”…
“Infelizmente o ocorrido foi o primeiro óbito aqui“: “O homem não tinha histórico de viagens ao exterior e está sendo tratado como caso de transmissão comunitária do vírus.”
Assim foram as duas notícias que confirmaram aquilo que já se sabia ser uma questão de tempo. Fronteiras e condição de classe não são suficientes para evitar uma infecção virológica, mas podem determinar quem vive e quem morre.
Nos EUA, onde 18% da população é negra, – 52% dos casos e 58% das mortes por Covid-19 são de pacientes negros -, o assassinato de George Floyd levantou uma onda de protestos contundentes ao redor do mundo, inclusive no Brasil, onde a polícia matou 17 vezes mais que a dos EUA em 2019. Mesmo sendo 54% da população, 71% das pessoas assassinadas pela polícia no Brasil em 2019 eram negras.
O boletim epidemiológico da Prefeitura de São Paulo de 30 de abril informava que uma pessoa preta tinha 62% e uma parda 23% mais chances de morrer de Covid-19 do que uma branca.
Apesar de ser a face mais explícita do racismo, o genocídio da população preta e pobre é a manifestação mais violenta de um fenômeno que é estrutural, tendo a guerra às drogas como um de seus principais pilares. O próprio termo guerra às drogas é controverso, já que não é possível declarar guerra a espécies vegetais. O inimigo tem classe e cor.
O Brasil tem a 3ª maior população carcerária do mundo (773.151 presos até junho de 2019), segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen). Enquanto 53,63% da população brasileira é negra (pardos + pretos), entre as pessoas presas esse índice sobe para 61,67%. Existe disparidade neste sentido em todas as regiões do Brasil, com destaque para o Sudeste, onde 42% da população é negra, sendo 72% nos presídios. De toda a população carcerária do Brasil, 28% tem suas condenações ou julgamentos relacionados a lei de drogas, índice que sobre para 64% (!!!) se analisarmos somente a população carcerária feminina.
Herdeiro de um projeto colonial de sucesso para os que dele tiraram vantagem, o Brasil tem um potencial gigantesco para o aumento de variedades agrícolas na sua produção (origem da maioria das substâncias psicoativas proibidas), sendo o 3º maior exportador do mundo. Ano a ano apresenta safras recordes e tem potencial para se tornar o maior produtor agrícola mundial nos próximos anos. Somente para a produção de grãos, a área brasileira para a produção é de 63 milhões de hectares na safra 2018/19, devendo se expandir para 71 milhões até 2027/28. Houve um aumento de 70% na produção de grãos na última década no país. Certamente vivemos em um país que pode ser considerado um grande foco da atenção mundial em termos de produção de variedades agrícolas hoje proibidas.
Em um momento como este, as gritantes contradições e desigualdades ficam ainda mais escancaradas, assim como a urgência das transformações que as enfrentem. Vivemos um momento em que abordar o tema do antiproibicionismo é correr o risco de passar por lunático ou oportunista: ainda é muito comum que enxerguem a legalização das drogas simplesmente como uma medida que, a partir de uma visão extremamente desinformada, teria o objetivo de aumentar o consumo de drogas em um momento de pandemia e incentivar um comportamento até mesmo promíscuo. Como se as drogas hoje proibidas já não tivessem ampla oferta e acesso. Como exemplo, podemos mencionar que o tabaco e o álcool neste momento são produtos proibidos na África do Sul, com justificativa oficial de reduzir os danos da pandemia – o que pode estar abrindo um enorme espaço para o comércio clandestino. O que dirá legalizar outras drogas em um contexto assim?
Em outros lugares do mundo talvez seja mais compreensível que a maior parte da população não se importe tanto com essa questão, sobretudo por serem menos impactados diretamente pela violência associada ao comércio ilegal de drogas e as suas relações com as forças de segurança. Em países como Brasil, México, Colômbia, EUA e outros, a superestrutura da sociedade – instituições como o governo, os meios de comunicação, as instituições educacionais e religiosas, entre outras – trabalham constantemente para associar toda a violência decorrente do proibicionismo aos próprios traficantes e a mais ninguém. Como disse Emicida em entrevista recente no Roda Viva, não é o rap que faz apologia à violência, e sim a situação do povo brasileiro.