Por Daniel Mello*
Em memória de Marco Antonio da Silva
Retrato de Montanha, foto de Alice Vergueiro
“Será que se um dia isso acontecer comigo, alguém vai me ajudar?”, disse Montanha, após narrar como tinha socorrido um amigo em convulsão. Montanha dormia na calçada em um lugar conhecido principalmente pelo uso de crack. Três anos depois dessa conversa, foi a vez dele passar mal. Mas ninguém o socorreu. Não por falta de vontade. Várias pessoas que presenciaram a cena disseram que os guardas municipais impediram que se aproximassem dele, enquanto ele agonizava na rua. Foram várias horas até a chegada da ambulância que o levou vivo ao hospital, apenas para morrer ainda naquele dia na Santa Casa de São Paulo.
Nessa mesma conversa que terminou com ele se perguntando se seria socorrido, se teria ajuda, ao ter uma convulsão ou coisa parecida, Montanha também disse que achava que era doente. Dizia que era “dependente químico” (rótulo que pegou da literatura dita científica). Saiu de casa, largou família, para fumar crack em meio aos ratos e outras pessoas sem-teto. Dizia que não era “bonzinho”, mas, transparente, sempre queria algo em troca dos seus favores. Não se achava uma pessoa assim tão boa, mesmo não tendo hesitado na hora de socorrer um companheiro de calçada. Esse favor, ele não recebeu de volta.
Esse é o mundo que se apresenta, em que uma pessoa é deixada para morrer na calçada por guardas que trabalham em turnos de 12 horas. Como suportar 12 horas de pé, vendo pessoas morrer e não fazendo nada. Não fazem nada porque o trabalho deles não é salvar, é bater. É possível acordar às 5 da manhã, para estar às sete agredindo pessoas sem café? Claro – , que, não. Sem dúvida é preciso açúcar também. Essa doce energia que o brasileiro consome em quantidades muito maiores do que o recomendado pela Organização Mundial da Saúde. Esse fator causador da obesidade, segunda maior causa de morte evitável. Derivado da cana que pode, segundo as pesquisas, ter no cérebro um efeito semelhante ao derivado da coca – cocaína ou crack (quando fumada). Mas é preciso energia, porque, afinal, como disse Brecht, “é cansativo ser mau”.
Não é possível ser mau o bastante sem café e sem açúcar. À noite, pode ser preciso álcool também. Bebem os que batem e os que são surrados por quatro horas diárias no transporte público. Os professores em salas de aula superlotadas e os pais dos alunos, parte do desemprego estrutural que barateia a mão de obra, também precisam ao menos de uma cerveja no fim do dia. Ou no começo, ou antes do almoço. E assim, a Ambev, maior cervejaria do Brasil e da América Latina, consegue lucrar R$ 11 bilhões em um ano. O mesmo que o estado de São Paulo gasta para pagar 80 mil policiais e colocar viaturas rodando 24 horas e batendo em moradores de rua, pretos e pobre em geral.
Toda essa conversa para fugir da pergunta óbvia: Por que você não estava lá? Por que VOCÊ não desenrolou a língua do Montanha, com risco de perder os dedos entre os dentes da mandíbula travada? Ele, que se dizia doente, se declarava dependente químico, morador de rua, pôode fazer isso por um amigo. Você, não. Não, não pude porque estava trabalhando. Não consigo me lembrar no que. Não consigo nem dizer que era algo muito importante. Mas, a verdade é essa: estava trabalhando. Do mesmo jeito que todos os que não perderam o emprego durante a pandemia apocalíptica de coronavírus continuamos em nossas atividades. Alguns, expostos aos riscos do trânsito e do vírus para entregar, por 2 reais, pratos que valem 50 vezes mais. “Sem comer, com comida nas costas”, eles dizem.
Eu poderia continuar narrando os horrores cotidianos, mas, sei que você já entendeu do que eu estou falando. Quero que você se lembre disso a próxima vez que alguém falar de clínicas para “tratar” a “dependência química”. Aproveite, e pergunte se tem como ser saudável em um mundo em que pessoas são pagas para bater e outras deixadas para morrer na calçada. Só se depende de verdade de água, comida e tempo de vida. O resto são histórias para distrair da perversão que se tornou o dia a dia.
*Daniel Mello é jornalista, documentarista e poeta. Faz parte d’A Craco Resiste.