Por Daniel Mello*
Um sacerdote fuma eternamente no topo de uma pirâmide no sul do México. Os olhos entalhados em pedra estão estatelados em visões que não podem mais ser ditas. A fumaça flui da ponta de um longo charuto e se espalha pelo ambiente, tocando o céu e descendo à terra.
Não se sabe quantas vezes na vida ou por dia o tabaco era fumado pelos maias. A imagem evoca algo de solene, um momento de reflexão ao menos. Assim como a foto de Pablo Neruda com um volumoso cachimbo no canto da boca parece estar associada ao seu olhar aguçado sobre o mundo. Junto com Sartre e Bauman, são pensadores que parecem, nessas fotos que os imortalizam, tirar ideias das nuvens de fumaça.
Não é o pensamento, obviamente, que sustenta as milionárias indústrias do tabaco, são os cigarros em papel feito para queimar rápido, nos últimos minutos da hora de almoço das jornadas de oito a doze horas de trabalho. Há tempo de pensamento entre acender um cigarro a caminho do metrô e jogá-lo pouco depois da metade na porta da estação? Fumar para queimar o tempo. Dias medidos em maços.
Ainda há, pelas calçadas, os que fumam com os olhos fora deste espaço. Nesses cachimbos, feitos em metal improvisado, muito pouco tabaco. A planta do sagrado pré-colombiano, industrializada em sacrifício ao Deus-financeiro, é apenas combustível para queimar a cocaína em pedra. O crack estala distante dos cultivos da planta coca, também de relação espiritual para os povos que existiam antes da invasão europeia.
Pode ser ilegal, mas a cocaína é industrial. A apropriação colonial embranquece e exaspera as capacidades anestésicas da medicina tradicional. A xilocaína ameniza as dores que chegam a pele, a fumaça passa pelos pulmões para amortecer o coração. Em Salvador, mulheres garantiram à Luana Malheiros que usam crack para viver. Faz sentido em um país em que mais de 11 de milhões de pessoas têm depressão – a patologização do sentimento que o mundo não é mais suportável.
Longe das gravuras sagradas dos maias, os fumantes deste tempo vão para os jornais com os olhos tarjados – a tarja preta é a marca escolhida para esconder loucuras e vergonhas. Melhor começarem desde criança no trabalho, diz, com moral superior, o presidente. “É preguiça”, grita a senhora rica, esposa do governador, que não se aguenta dentro do próprio rosto.
Assim, os que vivem sem esforço exigem que os braços que não são seus continuem a mover o mundo e a carregar bandejas. Corpos que, se as leis de heranças valessem para todos, poderiam passar dias e noites em repouso, aproveitando da riqueza que seus ancestrais africanos e indígenas construíram.
Daniel Mello é jornalista, documentarista e poeta. Faz parte d’A Craco Resiste.