Por Daniel Mello*
Pelas ruas e pela internet é fácil encontrar quem desconfie da vacina contra o coronavirus. Muita gente diz com convicção que não vai se imunizar. A desconfiança, para além de pequenos grupos, em relação à vacinação é estranha no Brasil, que conduz há décadas enormes e bem sucedidas campanhas de vacinação contra diversas doenças.
Não é difícil entender a causa, o descrédito vem sendo fomentado pelo próprio presidente da República, tornando a desinformação um ato de governo. Assim, como também foram ações governamentais a promoção do uso de medicamentos sem eficácia comprovada contra a covid-19 (cloroquina e ivermectina). Os remédios foram comprados e distribuídos pelo próprio governo que defende o “tratamento” contrário ao que a ciência apresenta como evidência.
Agora, as campanhas com informações falsas ou enviesadas não são exatamente uma novidade no Brasil. A estratégia foi amplamente utilizada por décadas para atacar as drogas classificadas como ilegais. Muito do que foi dito sobre a maconha, agora, cai por terra com o avanço das pesquisas para uso como medicamento e na legalização da planta pelo mundo. A substância foi um dos principais alvos das propagandas antidrogas do governo Bolsonaro supostamente direcionadas ao público jovem.
João Doria, atual governador de São Paulo, que aparece como grande promotor da vacinação contra o coronavírus no Brasil, também já atuou com força nesse campo. Em 2017, quando era prefeito da capital paulista, lançou uma peça de televisão em que mostrava os usuários de crack como zumbis. Todas as substâncias apresentam riscos para os consumidores, mas nenhuma delas torna as pessoas monstros sem cérebro.
Essas campanhas de desinformação são parte fundamental da estrutura que sustenta a chamada “guerra às drogas”. Uma política assassina que tem provocado a morte de dezenas de milhares de jovens por ano no Brasil e destruído outras centenas de milhares de vidas nas prisões. Assim como no caso dos medicamentos sem eficácia contra a covid-19, as mentiras são promovidas pelos governos com apoio de parte da classe médica e científica. Alguns que ganham muito dinheiro com clínicas que prendem muito e cuidam pouco. Ramo que também é explorado por grupos religiosos nas comunidades terapêuticas e seus crescentes contratos com o Poder Público.
Um dos maiores defensores da política de repressão às drogas no país, o obscurantista Osmar Terra, antes de político de carreira, é médico de formação. Com a mesma facilidade que disseminou informações sem embasamento sobre as drogas, também participou ativamente do negacionismo contra a pandemia. As mentiras, os discursos de poder e as políticas de morte estão totalmente conectados.
A pandemia de covid-19 já matou oficialmente 200 mil pessoas no Brasil. As mortes violentas na década passada oscilaram entre 41 mil, em 2019, e 62 mil, em 2016. Foram mais de 500 mil vidas perdidas, a maioria jovens e negras, em dez anos. Tudo indica que com uma população com renda precária que tem dificuldades de fazer isolamento e um governo negacionista, lamentavelmente os números de vítimas do coronavírus devem crescer muito ainda antes do fim dessa tragédia, que talvez se aproxime com as primeiras doses de vacina..Mas a epidemia de mortes por balas da polícia outros projéteis não dá sinais que vá desaparecer. Não até que seja possível vencer toda a desinformação e mentiras que mantém a ilegalidade das drogas, abrindo espaço para a violência e afastando as pessoas com consumo problemático do cuidado adequado.
*Daniel Mello é jornalista, documentarista e poeta. Faz parte d”A Craco Resiste.