por Renato Filev*, do Coletivo DAR.
Nos últimos anos, o conhecimento sobre os benefícios terapêuticos da maconha estão se difundindo pela sociedade. Com isso, vem aumentando o número de pessoas em busca de ajuda para obter estes medicamentos. Os componentes da planta apresentam efeitos terapêuticos para uma diversidade de doenças como epilepsia resistente, síndromes genéticas, cânceres, dores crônicas, espasmos, doenças neurodegenerativas, doenças intestinais, insônia, autismo, entre outras que vêm sendo amplamente estudadas. Por isso a necessidade de reunir alguma informação a respeito do trâmite para obtenção destes medicamentos a base de maconha e comentar sobre as alternativas que possam existir.
A maconha apresenta em sua composição centenas de moléculas, dentre elas por volta de 70 canabinóides. Estes canabinóides atuam em nosso organismo em conjunto, exercendo os efeitos terapêuticos da maconha. Dentre os canabinóides mais estudados e com maiores propriedades terapêuticas descritas estão o THC (tetraidocanabiol) e o CBD (canabidiol). O THC é o componente da planta com característica psicoativa, ou seja, aquele que provoca as principais alterações mentais: prazer, euforia e barato. É graças ao THC que o uso sociocultural da maconha é popular. O THC é analgésico, anticonvulsivante, potente relaxante e estimulador do apetite. No entanto, alguns usuários medicinais tendem a apresentar desconforto com os efeitos psicoativos do THC. E devido à cronicidade do uso, associada a uma possível inadequação com as atividades sociais, 10% dos usuários medicinais tendem a abandonar o tratamento. Este número é relativamente baixo comparado a outros fármacos receitados para as mesmas indicações que a maconha. Além disso, existem pacientes que necessitam de medicamentos canabinóides que não apresentem necessariamente o THC em sua composição, como é o caso de crianças que apresentam quadros crônicos de epilepsia resistente aos tratamentos com os antiepilépticos vendidos nas farmácias. Aproximadamente um em cada três epilépticos é resistente ao tratamento e poderia se beneficiar do uso da maconha como terapia. No universo brasileiro, esse número representa aproximadamente 600 mil pessoas.
Ao redor do globo, a maioria de usuários medicinais de maconha o faz através da inalação da fumaça ou vapores produzidos pela combustão ou aquecimento das flores da planta, que contém a maior quantidade dos canabinóides. No entanto, uma parcela importante de usuários utiliza estes componentes por via oral, através de produtos provenientes da manipulação da planta, como óleos, manteigas, extratos e sucos. A extração dos canabinóides é realizada por choque térmico ou com solventes orgânicos (como o etanol e o butano) e também através da preparação de alimentos contendo os princípios ativos da Cannabis em manteigas e emulsões. É importante destacar que produtos comestíveis contendo canabinóides demoram cerca de duas horas para fazer efeito. Além disso, é mais difícil controlar a quantidade de canabinóides ingeridos, quando comparada com a forma inalada, e a duração desses efeitos é mais prolongada, podendo durar até oito horas após a ingestão.
Para o tratamento do câncer, o uso consagrado da maconha acontece devido a seu efeito na diminuição da náusea, vômito, perda do apetite e caquexia (enfraquecimento extremo) que ocorrem geralmente em decorrência do tratamento da doença. Existem relatos de uso por conta dos efeitos antitumorais dos canabinóides. Contudo, mais estudos em humanos são necessários para comprovar quais canabinóides, em quais tipos de tumores, em qual estágio, qual o tipo de administração, qual a dose, entre outras condições clínicas, são as mais adequadas para este tratamento. Atualmente, as pesquisas estão em fase preliminar, o que torna incerta a eficácia do tratamento. No entanto, sabendo da dificuldade do processo terapêutico que envolve um câncer, acreditamos que muitas pessoas busquem na planta uma alternativa promissora mesmo sem a comprovação científica deste benefício. Relatos recorrentes de pacientes com doenças crônicas, altamente debilitantes ou com mortalidade elevada, apontam que a maconha melhora seu humor, bem-estar e qualidade de vida, características essenciais para lidar com o tratamento e com a doença.
Para os pacientes que pretendem buscar auxílio terapêutico do fitoterápico sem a devida comprovação de eficácia existem algumas considerações a serem levadas em conta relativas à segurança e bem-estar dos indivíduos. Pacientes imunossuprimidos e que possam estar vulneráveis a outros tipos de infecções oportunistas, como é o caso dos HIV positivos, devem ter muita cautela quanto à qualidade da planta utilizada e a via de administração do produto. Para assegurar-se de que este tratamento não irá lhe prejudicar recomenda-se a escolha de uma planta cultivada para finalidades terapêuticas. Deve-se buscar uma técnica adequada para o uso, ajuste de dose e, principalmente, prevenir os riscos de uma possível contaminação. É preferível buscar flores com procedência de origem, de produção orgânica, sem fertilizantes químicos ou pesticidas e é importante que estejam livres da infestação de fungos e outros micróbios. A todos (as) os (as) pacientes que buscam a maconha como tratamento, é recomendado que se faça o uso através de vaporizadores ou pela ingestão oral, pois a fumaça do baseado pode conter substâncias cancerígenas provenientes da combustão da matéria orgânica. Dito isto, tentaremos esclarecer o panorama atual que se encontra a situação da regulação do uso medicinal da maconha.
Em março de 2016, uma decisão judicial obrigou a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) a regular a prescrição e importação de maconha e outros produtos derivados que contenham canabinóides, inclusive o THC, para o uso medicinal. Apesar da Agência ter recorrido desta decisão, ela é válida, por enquanto, em todo o território nacional. Esta regulação busca facilitar o acesso aos medicamentos canabinóides e autoriza que médicos prescrevam maconha e derivados para quaisquer finalidades, permitindo que pacientes entrem com um processo especial de importação destes medicamentos. Embora o avanço seja notório diante do cenário reacionário atual, a regulação funciona mal e na prática não facilitou o acesso à maconha medicinal aos brasileiros. O tramite é burocrático e bastante custoso. O valor do medicamento importado e o custo dos impostos e taxas cobradas pelas entidades governamentais são altos, sendo que, dependendo do caso, o valor total pode ultrapassar 15 mil reais por mês – o que torna esse tratamento inviável à realidade brasileira.
A ANVISA regulou desta forma para não ser punida pela justiça, sem grande intenção em auxiliar aqueles (as) que necessitam dessa medicação. Contudo, geraram precedente de uma demanda inestimável. Mesmo que este medicamento entre na lista de alto custo do SUS, seria uma prática que oneraria o sistema de saúde de tal sorte que continuaria sendo inviável a sua importação para atender a necessidade local. Para que tal demanda seja atendida sem que onere os cofres públicos é necessária a regulação da produção nacional, tanto sobre o rigor da indústria farmacêutica como o cultivo pessoal deste fitoterápico.
Há, no entanto, um problema na regulamentação no que diz respeito à prescrição destes medicamentos. O Conselho Federal de Medicina (CFM), que regula a profissão, desautorizou médicos a prescreverem Cannabis. Há uma exceção: casos de epilepsia resistente em pacientes de zero a 18 anos. Este conselho de classe permite que extratos de maconha que contenham CBD possam ser prescritos apenas por neurologistas clínicos e cirúrgicos e também por psiquiatras, apenas para essa modalidade e sobre estas condições bastante restritas. Caso o médico tenha outra especialidade ou se um neurologista tenha pacientes com epilepsia resistente fora desta faixa etária estabelecida, ficam proibidas as prescrições, podendo haver represálias e punições do Conselho a estes médicos.
Ou seja, o governo federal, através da ANVISA, autoriza a importação de maconha para o tratamento de quaisquer doenças. Todavia, o conselho de classe proíbe que os médicos o façam. É preciso ressaltar que médicos neurologistas vêm prescrevendo maconha para outras finalidades, bem como médicos de outras especialidades, como oncologistas, da mesma forma vêm prescrevendo, num movimento de confronto direto às imposições do CFM. Existem múltiplos cenários e possibilidades para obtenção destes medicamentos. Essa escolha vai depender da capacidade em avaliar os riscos, tanto de saúde quanto de justiça, além de avaliar se cabe no orçamento. Como a maconha ainda é uma planta proibida no Brasil, em todos os cenários deve-se prezar pela precaução.
Confira na segunda parte do texto as possibilidades práticas para a obtenção de maconha medicinal no território brasileiro.
*Renato Filev é neurocientista e pesquisador da UNIFESP.